Título: O levantamento da fiança bancária na execução fiscal
Autor: Bim, Eduardo
Fonte: Valor Econômico, 28/12/2006, Legislação, p. E2

Os contribuintes estão tendo suas garantias, particularmente as fianças bancárias e os depósitos judiciais para garantir as execuções, levantadas antes de esgotarem a sua chance de defesa propiciada pela Lei de Execuções Fiscais (LEF). Em face da Súmula 317 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que diz ser definitiva a execução de título extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os embargos, alguns magistrados estão determinando o levantamento pelo Fisco da garantia enquanto pende apelação sem efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal julgados improcedentes. Entende essa corrente jurisprudencial que os bens dados em garantia podem ser leiloados, o dinheiro levantado ou a carta de fiança liquidada pelo Fisco antes da plena apreciação da defesa, vale dizer, antes da apreciação do recurso contra a decisão nos embargos.

Por esta corrente, o dinheiro empregado no depósito ou na carta de fiança será carreado aos cofres do Fisco antes do fim do processo, o que pode causar diversos transtornos para a empresa, uma vez que, se o recurso do contribuinte contra a decisão de primeira instância for provido, a devolução destas garantias se sujeitará à obrigatória propositura de ação específica, cujo pagamento ficará atrelado à emissão de precatório. Basicamente há um autêntico "solve et repete" (pague para depois discutir), prática medieval abominada pelo direito moderno.

O raciocínio da jurisprudência se baseia na distinção que o artigo 587 do Código de Processo Civil (CPC) faz entre execução definitiva e provisória. Por esta norma, a execução fundada em título executivo extrajudicial ou em sentença transitada em julgado é considerada definitiva, em oposição à outra espécie de processos executivos denominados provisórios. Nesta última, veda-se o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importe em alienação de propriedade ou, sem caução idônea, o levantamento de dinheiro (CPC, art. 475-O, III). Fundada em título executivo extrajudicial (Certidão de Dívida Ativa - CDA), a execução fiscal é execução definitiva. Logo, não haveria sob essa óptica nenhum embaraço ao levantamento das garantias após a decisão de primeira instância, vale dizer, nenhum embaraço ao entendimento da corrente jurisprudencial de que se trata.

Esse entendimento baseado no Código de Processo Civil é transplantado ao executivo fiscal com fundamento em permissivo legal da própria Lei de Execuções Fiscais (artigo 1º), que ordena a aplicação subsidiária das normas processuais do CPC às execuções fiscais. O problema desse entendimento é que ignora outras importantes regras jurídicas da própria Lei de Execuções Fiscais que conflitam com o CPC, particularmente a insculpida em seu artigo 32, § 2º.

Esse dispositivo preceitua que os depósitos em dinheiro garantidores da execução fiscal serão devolvidos ao contribuinte ou entregue ao Fisco somente após o trânsito em julgado, ou seja, após decisão definitiva nos embargos à execução interpostos pelo contribuinte. Em face desse específico dispositivo legal é irrelevante a distinção feita pelo CPC entre execução definitiva ou provisória. De uma ou de outra maneira - por expressa determinação legal - é necessário esperar o trânsito em julgado dos embargos. É pacífico na ciência do direito que regras de caráter especial, como as da Lei de Execução Fiscal (LEF), prevalecem sobre as de caráter geral, como são as do CPC.

-------------------------------------------------------------------------------- Aplica-se a LEF, com a espera do trânsito em julgado, ou o CPC, com a execução definitiva e liquidação imediata? --------------------------------------------------------------------------------

Questão mais complexa reside quando a garantia consiste em carta de fiança bancária. Como nesse caso não há dispositivo expresso na LEF, surge a questão: aplica-se a LEF, com a conseqüente espera do trânsito em julgado para a liquidação da carta, ou o CPC, com a execução definitiva autorizando a liquidação imediata?

Para responder a tal indagação, faz-se necessário discorrer sobre a fiança bancária. Ela consiste em documento fornecido por instituição financeira em que essa garante o débito constante em certo processo judicial por prazo indeterminado. Em termos práticos, não existe diferença para o credor entre o depósito em dinheiro e a carta de fiança, porque depois do alvará judicial, ambos se convertem em renda aos cofres do Estado. A diferença é mais semântica do que de conteúdo. No depósito, o dinheiro fica em conta do juízo; na carta de fiança o dinheiro fica na instituição financeira. Corrobora tal entendimento o fato do artigo 15, inciso I, da LEF, autorizar em qualquer fase do processo a substituição da penhora por depósito em dinheiro ou fiança bancária.

Por tal similitude, a aplicação analógica do artigo 32, § 2º é medida interpretativa que se impõe e que nenhum prejuízo causa ao Fisco, embora cause ao contribuinte que almeja garantir a execução por meio da carta de fiança. O objetivo da norma em questão é aplicável à garantia mediante carta de fiança por visar o mesmo objetivo do depósito em dinheiro, ou seja, a garantia líquida do crédito tributário cobrado na execução fiscal.

Um complicador surgiu com a nova reforma do CPC (Lei nº 11.882, de 2006): os embargos à execução não terão mais efeito suspensivo (art. 739-A), dependendo de ordem judicial para tê-lo bem como a presença dos seguintes requisitos: aparência de sucesso no processo, risco de dano irreparável e garantia da execução (§ 1º). Essa alteração, entretanto, não tem o condão de influenciar na matéria, uma vez que a lei especial e anterior (LEF, art. 32, § 2º) prevalece sobre a posterior e geral (CPC, art. 739-A), conforme nossa doutrina (Eduardo Fortunato Bim, "A subsistência do ISS fixo para as sociedades uniprofissionais em face da Lei Complementar 116/03: a plena vigência do § 3º do artigo 9º do DL 406/68", O ISS e a Lei Complementar nº 116, coordenador Valdir de Oliveira Rocha, Dialética, 2003) e jurisprudência (STF, HC 88.702/SP, STJ, Resp 713.752/PB). No habeas corpus 88.702/SP (STF) foi decidido: mesmo que se tenha por configurada, na espécie, hipótese mais complexa (motivada pela existência de antinomia entre os critérios cronológico e de especialidade), reveladora, por tal razão, de uma clássica antinomia de segundo grau - decorrente, no caso, da incompatibilidade entre norma anterior especial (Lei nº 8.906/94, art. 7º, V) e norma posterior geral (Lei nº 10.258/2001) -, ainda assim prevalecerá, por efeito da hierarquização do critério da especialidade (JUAREZ FREITAS, 'A Interpretação Sistemática do Direito', p. 94/98, item n. 3.4, e p. 106/107, item n. 4.2, 3ª ed., 2002, Malheiros), a norma fundada no Estatuto da Advocacia (lex posterior generalis non derogat priori speciali)".

A jurisprudência que ignora esses preceitos da lei especial - a LEF -- ainda não enfrentou diretamente a questão sobre esse ponto de vista, devendo, a nosso ver, rever seu posicionamento na matéria para somente autorizar o levantamento do dinheiro ou a liquidação da carta de fiança após o trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal, não antes, quando do recebimento do recurso de apelação dos embargos sem efeito suspensivo.

Eduardo Fortunato Bim é advogado de multinacional em São Paulo

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