Título: Energia e Meio Ambiente duelam em 2007
Autor: Schüffner, Cláudia
Fonte: Valor Econômico, 28/12/2006, Especial, p. A14

Carol Carquejeiro/Cia de Foto/Valor Bahr: "É preciso resolver as zonas cinzentas da lei ambiental. Não fica claro quem é o responsável pelas decisões" Na transição entre o primeiro e o segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva o futuro ficou claro - e enevoado. O grande embate continuará sendo entre meio ambiente e desenvolvimento. Parece certo que a discussão irá adiante, com ou sem a ministra Marina Silva na pasta do Meio Ambiente. O setor elétrico, um dos pivôs da crise, diz que se o Brasil crescer 5% ao ano, vai faltar energia lá na frente e que a trava é o processo de licenciamento das obras. O setor ambiental não veste a carapuça - retruca que a ameaça de apagão é problema de falta de planejamento, que obras são licenciadas e os empreendedores não as tiram do papel, e que se os projetos fossem de melhor qualidade e produzissem menos danos ambientais e sociais, a vida seria mais fácil.

O embate foi violento no final do ano e até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu suas estocadas reclamando da lentidão do licenciamento ambiental e das zonas de sombra da legislação - depois, vendo o quadro de governo contra governo, silenciou, prometendo para o começo de 2007 um pacotão de medidas para "destravar" a economia. A fogueira ganhou lenha a poucos dias da reeleição do presidente Lula. Ao responder à previsão de que pode faltar energia a partir de 2010, a ministra Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil, soltou: "Não vai haver apagão nem que a vaca tussa." E anunciou que o Ministério das Minas e Energia pretende não só ressuscitar Angra 3 como estudar uma nova série de usinas nucleares. "Eu sou contra", reagiu, taxativa, Marina Silva, à proposta. "O Brasil tem enorme potencial de resolver seu problema energético a partir da biomassa, da energia eólica, de hidrelétricas. Não temos ainda meios seguros para a destinação dos resíduos nucleares. É um perigo."

A discussão acalmou dentro do governo, mas continua forte do lado de fora. O setor elétrico entra 2007 atento à oferta apertada de energia, que deve se manter assim até 2009 com a entrada do Gás Natural Liqüefeito (GNL) na matriz energética. Até lá, as apostas são de preços mais altos no mercado de energia, tanto no curto quanto no longo prazo, com menos oferta de geração térmica, já que o gás apresenta consumo superior à atual capacidade de suprimento. Para atender à demanda de energia em caso de crescimento econômico robusto, as contas são de que o Brasil precisa acrescentar, por ano, entre 2,5 mil e 3 mil megawatts (MW) à sua capacidade instalada. E, fala em coro com um flanco do governo, só com grandes projetos estruturantes, como as usinas do rio Madeira e Belo Monte, além de Angra 3, isso será possível.

O plano decenal para o setor de energia tem em suas premissas um crescimento médio de 4,2% da economia brasileira nos próximos 10 anos, sendo 4,5% na segunda metade da década. Essas projeções estão distantes do magro resultado do PIB até o terceiro trimestre de 2006, que crescia apenas 2,5%. Com isso, o risco de o país ter um déficit de energia em 2007 tem sido afastado. "Se o Brasil crescer 5% vai faltar muita energia. Mas com um PIB crescendo a 3% não vamos ter problema. Sobreviveremos dois anos sem gás e aí entra o GNL e se consegue atender o parque térmico instalado", diz Marco Tavares, da empresa de consultoria Gás Energy. "Mas em 2011 e 2012 já seriam necessários mais 3 mil MW de potência instalada e Angra 3. A partir daí vamos precisar de uma das grandes hidrelétricas, Belo Monte ou Madeira", prossegue.

Daniela Toviansky/Valor Langone: "A nova gestão, independente do ministro, sairá de um ponto de partida diferente daquele em que começamos" As duas usinas do Madeira em Rondônia, projeto do Consórcio Furnas-Odebrecht, estão em fase de conclusão de licenciamento dentro do Ibama, o braço operacional do Ministério do Meio Ambiente, o MMA. A licença-prévia já saiu e agora o órgão licenciador estuda a pertinência das sugestões que saíram das audiências públicas realizadas na região. Trata-se de um megaprojeto que provocou muita polêmica até por estar próximo à fronteira com a Bolívia. O caso de Belo Monte, da Eletronorte, no Pará, é mais complicado. O processo, é verdade, foi bloqueado - mas apenas ao chegar ao Supremo Tribunal Federal, por afetar nove comunidades indígenas. E aqui, o Ibama, que estava dando início ao processo de licenciamento, virou réu numa ação movida pelo Ministério Público Federal.

Em torno a este debate há mistificações. A mais repetida é que o meio ambiente (leia-se processo de licenciamento) freia o crescimento do país. O Ibama fecha 2006 batendo o recorde histórico de concessão de licenças - o anterior foi em 2005. O braço executor do MMA jamais licenciou tanto como neste ano: foram 272 licenças até o Natal, 237 no ano passado, a maioria para obras de energia e transporte. No início da gestão, o número médio de emissão de licenças era de 125 ao ano, e a gritaria, sensivelmente mais branda.

Os dois fronts deste embate parecem puxar megawatts como as pontas de um cabo-de-guerra. O Ibama licenciou nesta gestão 5476 MW; destes, 2437 MW tem licença e não tem obra, dizem os dados do órgão. Deste total, 21 são hidrelétricas, o equivalente a 4693 MW, o resto da potência é térmica. Dito de outra maneira, 45% da energia licenciada pelo Ibama neste período não virou tijolo. São várias as explicações - desde a espera para o melhor momento para investir até a mudança societária em algumas empresas - mas nenhuma é ambiental. "O crescimento tem que respeitar o meio ambiente. A nova gestão, independente da troca de ministro ou não, sairá de um ponto de partida diferente daquele em que começamos", diz Claudio Roberto Bertoldo Langone, secretário-executivo do MMA. "O Ministério tinha baixo protagonismo. Agora é um dos mais ativos do planejamento", continua.

O fato é que MMA e Ibama foram melhor equipados, tanto em infra-estrutura como em pessoal, e, diz a ministra Marina, exigiram mais qualidade dos projetos analisados. Mas isso parece uma discussão entre torcedores do Flamengo e do Fluminense. No setor elétrico, o momento é de cautela e a tradução de "mais qualidade" é "complicado processo de licenciamento". Por ali, avalia-se que só não vai faltar energia porque o país não vai crescer como se previa e está chovendo nos lugares certos. O horizonte, agora, seria uma questão mais da alçada de São Pedro do que dos técnicos do Ibama. "Entramos no período religioso do setor, em que temos que rezar para São Pedro, pois no curto prazo só a chuva pode ajudar", diz Tavares, da Gás Energy, referindo-se às chuvas que enchem os reservatórios do Sudeste.

Um dos críticos mais contundentes do eventual "atraso" das obras das grandes hidrelétricas é o presidente da Eletrobrás, Aloisio Vasconcelos. Segundo ele, a usina de Simplício, no rio Paraíba do Sul, poderia ficar pronta pelo menos seis meses antes - está prevista para entrar em 2010 - mas a oportunidade foi perdida devido ao que chama de "incompreensível ritual de licenciamento". Simplício, de 362 MW, tem orçamento estimado em R$ 1,74 bilhão. A usina obteve licença ambiental e foi a leilão. Furnas, subsidiária da Eletrobrás, comprou e decidiu começar a obra fazendo um túnel que vai desviar o curso da água para aumentar a vazão. Vasconcelos disse que a licença pedida ao Ibama para essa parte da obra foi negada.

"Nos disseram que a licença que existe não é para o túnel, só para a obra. Como se uma coisa não fizesse parte da outra", desabafou. Vasconcelos é conhecido por sua ironias em relação ao setor ambiental. Diz que a hidrelétrica de Ipoeiras, retirada do último leilão de energia, "foi inviabilizada por causa da dor-de-cabeça nos peixes".

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Toda história tem dois lados, e a usina de Simplício, dentro do MMA, tem outra versão. A obra provocou discussão na região pelo uso da água e por criar uma alça seca no rio. De qualquer modo, a licença prévia foi concedida em 16 de setembro de 2005, mas a licença de instalação do empreendimento só foi solicitada em 13 de novembro deste ano. "Estranhamos esta reclamação porque o empreendedor levou um ano e dois meses para apresentar o projeto executivo", rebate Langone.

Em um ponto, tanto empreendedores do setor elétrico quanto os técnicos do setor ambiental, concordam: a urgência em resolver as zonas cinzentas da legislação. "Não fica claro quem é o responsável pelas decisões", diz Maurício Bähr, presidente do conselho de administração do grupo Suez (ex-Tractebel), que tem 100% da usina São Salvador e 40% da hidrelétrica de Estreito, a maior em construção no país e cujo processo de licenciamento ambiental levou quatro anos. Com uma carteira de projetos orçados em R$ 3,8 bilhões junto com os sócios Vale, Alcoa e Camargo Corrêa, Bähr sustenta que existe uma superposição de poderes entre os órgãos da área ambiental. Exemplifica com o processo para obter a licença de instalação de Estreito - uma hidrelétrica gigante de R$ 3 bilhões que será construída no rio Tocantins com capacidade de gerar 1.087 MW. Os sócios tiveram que submeter a obra ao Ibama e também à Funai, que solicitou um estudo etno-ecológico. Segundo ele, a intenção era "checar a interferência indireta potencial das obras nas comunidades indígenas que estão há 70 quilômetros de distância".

Mas aqui, o crivo ambiental teve fluxo relâmpago - os dados do MMA revelam que o tal estudo solicitado pela Funai entrou no Ibama em novembro, e a partir dali, a licença levou apenas 32 dias para sair.

Cláudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, que reúne as maiores empresas do setor, acha que a expansão da oferta de energia no Brasil tem uma combinação de problemas de difícil equação. Um deles é a imprevisibilidade com relação aos custos e prazos decorrentes do processo de licenciamento ambiental. "Ao longo de todo o processo o empreendedor não tem segurança com relação aos prazos e custos que serão impostos ao projeto. A cada etapa, corre o risco de estar submetido a novos custos. Essa combinação produz efeitos negativos em relação aos empreendimentos, o que acaba tornando a energia mais cara ou, no limite, fazendo com que ele demore ou até deixe de empreender", explica. "Esse é o efeito. Já a causa disso é difusa. Não é exclusiva de um órgão ambiental. Medidas tomadas pelo Ministério Público, por iniciativa própria ou atendendo a grupos específicos e ações populares, também têm o mesmo efeito. Esta combinação de causas provocam resultados em que a perda é da sociedade como um todo", continua.

Ele avalia que a correção dessa situação não depende exclusivamente de um ato de vontade do poder Executivo e nem de um ato legislativo a partir do Congresso , mas sim da combinação de tudo isso num ambiente em que "a sociedade precisa ter mais informação sobre a necessidade de crescer contando com energia para o seu progresso, com o menor comprometimento ambiental possível, ao mesmo tempo sabendo que é impossível produzir energia elétrica sem que se afete, de alguma forma, o meio ambiente", diz ele.

Para Langone, do MMA, a solução passa por projetos "mais redondos" aterrissando no Ibama. "Quanto melhor eles forem, e quanto melhor for escolhido o lugar para fazer a obra", diz, menos a tal "imprevisibilidade" influirá no processo. Comunidades indígenas, populações ribeirinhas e quilombolas são protagonistas na tal imprevisibilidade e deslocá-los para inundar a área em que tradicionalmente vivem faz parte do custo social dos empreendimentos. Esta despesa é rotineiramente superior ao desembolso nos reparos ambientais. O custo ambiental da hidrelétrica de Estreito, por exemplo, foi calculado em cerca de R$ 30 milhões. O social ultrapassa a marca dos R$ 100 milhões.

No início de janeiro, se tudo correr bem, um projeto de lei será encaminhado pelo presidente Lula, em regime de urgência, para votação no Congresso. Começará aí, acredita-se, a "destravar" o nó que barra os licenciamentos ambientais. Trata-se da regulamentação do artigo 23 da Constituição. Assim ficarão mais claras as competências dos três níveis de governo quanto às exigências ambientais de cada projeto. O Ibama, esperam os técnicos, deixará de perder tempo com obras menores e poderá se dedicar mais ao estudo de empreendimentos de grande complexidade, como as usinas do Madeira e de Belo Monte, por exemplo. A esperança, também, é que a iniciativa reduza as ações judiciais que paralisam os empreendimentos.

Mas ainda levará um bom tempo, no Brasil, para que ambientalistas e empreendedores falem a mesma língua, acredita Glenn Switkes, diretor do programa na América Latina da IRN, a International Rivers Network, uma ONG com forte atuação na análise dos impactos ambientais de hidrelétricas em várias partes do mundo. "O setor elétrico está tentando jogar todos os megaprojetos na marra. Criam uma crise ao invés de tratar o problema com seriedade, porque acham que o Ministério do Meio Ambiente está fragilizado", diz ele. "São projetos destrutivos, não promovem desenvolvimento, deslocam milhares de pessoas que vão perder seu modo de vida tradicional." Trata-se, segundo ele, de uma visão pouco moderna de desenvolvimento. "O mundo mudou. Na Califórnia se enfatiza eficiência energética e gerenciamento de demanda da energia, dando subsídios a empresas e residências que querem reduzir energia", prossegue. "A economia da Califórnia cresceu muito assim, fazendo da eficiência energética a fonte mais importante. Não precisa tirar todos os ribeirinhos da beira do rio e jogar em casas de tijolos na periferia da cidade."

Roberto Smeraldi, diretor da Amigos da Terra - Amazônia Brasileira, outra ONG de renome, fala no mesmo tom e diz que toda a discussão que ocorreu sobre os xiitas no Ministério do Meio Ambiente ou a permanência ou não da ministra Marina Silva não tem muito fundamento. "Não vejo como ela tenha atrapalhado nenhum processo. Muito pelo contrário." Ele ressalta a tentativa constante da ministra Marina de colocar os temas ambientais na transversalidade dos projetos de desenvolvimento apresentados pelos vários ministérios. "É muito positivo o anseio de ter uma política ambiental de governo e não só do Ministério do Meio Ambiente", diz Smeraldi. "Mas, por ora, esta tentativa ficou totalmente frustrada. Ficou só no papel, foi voto vencido."

Seu palpite é que se o nome à frente do MMA for mudado, esta tentativa de jogar a ótica ambiental para além de seu próprio nicho e lançá-la nas políticas federais de transporte, de agricultura, de energia pode perder completamente a força. Isso sem falar no arrepio que o nome do diretor geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, provoca nos ambientalistas. Ele foi cogitado como sucessor de Marina Silva nos dias em que o duelo entre meio ambiente e desenvolvimento alcançou os níveis mais altos de fervura. "É como colocar o lobo para proteger os porquinhos", diz Glenn Switkes.