Título: Segurança jurídica e tribunais superiores
Autor: Paola, Leonardo Sperb de
Fonte: Valor Econômico, 12/09/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Em todo sistema jurídico, coloca-se o problema do equilíbrio dinâmico entre a necessidade de mudança, de um lado, e a de estabilidade, de outro. Isso vale tanto para a criação como para a aplicação das normas jurídicas. Sem mudanças, o sistema se enrijece, torna-se disfuncional; sem estabilidade, mantém os cidadãos e empresas em estado de incerteza, deixando de oferecer um norte para o desenvolvimento de suas atividades. Pois bem, a cúpula do Poder Judiciário, composta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem contribuído negativamente para o desequilíbrio do nosso sistema.

A instabilidade decisória é um mal crônico no STJ. Se o papel atribuído pela Constituição Federal a essa corte é o de uniformizar a interpretação das leis federais, esse papel tem sido muito pobremente desempenhado. Não deitou raízes no tribunal a compreensão de que a observância dos próprios precedentes é crucial para o seu fortalecimento, para a orientação dos demais tribunais e juízes, dos advogados, dos cidadãos e das empresas. Ao revés, cada nova composição de seus diversos órgãos fracionários faz tábua rasa do que vinha sendo até então decidido, enfraquecendo significativamente a influência que a corte poderia exercer sobre os operadores jurídicos. É, por exemplo, o que se deu em matéria de decadência e prescrição, em que idas e vindas sucessivas desnortearam tanto o fisco como os contribuintes. É também o que se tem visto, mais recentemente, no tocante à exigibilidade da Cofins relativamente às sociedades profissionais - por vários anos, o STJ sustentou a vigência de isenção em favor dessas sociedades, para, agora, deixar de conhecer a matéria, sob a alegação de que se trata de questão constitucional.

Ultimamente, essa inconstância parece ter contaminado uma corte que, até então, se notabilizara por sua maior firmeza: o Supremo. De fato, uma rápida mudança na composição do Supremo (seis novos ministros, de um total de onze, em pouco mais de três anos) contribuiu para reabrir questões que, bem ou mal, pareciam resolvidas: assim com a exigência de depósitos recursais no âmbito administrativo (considerada anteriormente válida pelo plenário); assim com a correção monetária de balanços em 1990 (num primeiro momento, considerou-se constitucional a Lei nº 8.200, de 1991; assim com o cômputo do ICMS na base de cálculo da Cofins (que vinha sendo considerada matéria infraconstitucional pelo Supremo).

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Em favor dessas oscilações, argumenta-se que é melhor mudar do que permanecer no erro; que a busca de uma solução mais correta é um dever incessante dos tribunais; que a justiça deve prevalecer sobre a estabilidade/segurança. Não deixa de haver uma certa razão nessa linha de raciocínio. Há casos em que um decisão pode afrontar de maneira tão grosseira o sentimento de justiça de uma comunidade, a letra de um dispositivo constitucional ou legal, que nunca é tarde demais para mudá-la (pelo menos em relação a novos casos). Mas, em geral, não é assim: a textura aberta da linguagem das regras e princípios dá margem a diversas soluções igualmente defensáveis. Então, o mais recomendável é que, consolidada uma das alternativas possíveis e razoáveis, essa ganhe foros de permanência, ainda que não agrade a todos os julgadores, atuais e futuros. Acresce que a própria alteração jurisprudencial não deixa de ser uma fonte de injustiças, pois implica diferença de tratamento entre os casos que foram julgados antes e depois dela, entre os jurisdicionados que tiveram um direito reconhecido, em um primeiro momento, e os que, em um segundo momento, o tiveram negado, ou vice-versa.

Por outro lado, o mais das vezes, o que se perde com a mudança é muito mais significativo do que aquilo que se ganha com ela. Perde-se, por exemplo, o poder norteador dos precedentes, e não só no julgamento de novos processos, mas também na orientação prática da conduta dos jurisdicionados. A norma jurídica (integrada também pela jurisprudência dos tribunais) não é apenas o critério de julgamento do caso concreto; é igualmente a pauta de comportamento, de tomada de decisões pelos cidadãos e empresas. Ora, se essa norma não adquire consistência com o passar do tempo, se está sujeita a constantes mudanças de significado, então essa função desaparece ou pelo menos perde relevância. Basta imaginar a situação de alguém que age ou deixa de agir tendo em vista um entendimento consolidado dos tribunais, e, depois, com uma mudança repentina desse mesmo entendimento, vê-se em situação desvantajosa, irregular ou mesmo ilícita. Efeito colateral dessa imprevisibilidade é a rediscussão incessante de questões de direito já anteriormente julgadas. Afinal de contas, se não há razoável confiança na permanência dos precedentes, o mais recomendável, pragmaticamente falando, é que se continue a discutir o tema por tempo indefinido, confiando-se em uma futura guinada jurisprudencial favorável à tese que se defende.

Concluindo, mais do que mudanças institucionais (de que é exemplo a recente introdução da súmula vinculante), impõe-se uma tomada de consciência, por parte dos integrantes do Poder Judiciário, quanto aos riscos acarretados pela mudança contínua de suas decisões. Sem isso, ao invés de um poderosa luz de farol, advertindo os navegantes das águas jurídicas para os recifes, o Judiciário emanará uma luz reduzida e dançante de vagalume.

Leonardo Sperb de Paola é advogado, doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de direito na FAE Business School

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