Título: Sustentar o SUS é o desafio
Autor: Leite, Larissa ; Khodr, Carolina
Fonte: Correio Braziliense, 16/10/2010, Brasil, p. 14

Entrevista - José Gomes Temporão

Ministro da Saúde lista avanços em vários setores, mas reconhece a dificuldade de financiar o atendimento a 160 milhões de brasileiros O carro-chefe do serviço de saúde brasileiro acumula o papel de maior desafio da área: um único sistema para dar conta de 160 milhões de pessoas ¿ as que dependem do serviço público. O Sistema Único de Saúde (SUS) permeia, entre números que evidenciam realizações e desafios deixados ao próximo governante, a entrevista concedida pelo atual titular da pasta, José Gomes Temporão, ao Correio. O ministro destacou, entre outros programas, o Saúde da Família, cuja cobertura teve crescimento de 56% a partir de 2003. A atenção básica, no entanto, precisa ser ampliada em municípios com mais de 100 mil habitantes, reconhece Temporão. O aumento no número de transplantes e doações de órgãos também foi enfatizado: eles cresceram, respectivamente, 59,2% e 85%, entre 2003 e 2009. Nesse caso, o desafio é tornar os procedimentos mais equilibrados entre os estados. Para isso, Temporão cita um programa, lançado no mês passado: o Qualidott ¿ que prevê a qualificação de profissionais. Em relação ao combate à dengue, Temporão compartilha a responsabilidade com outras pastas: ¿O controle envolve, além do setor de saúde, questões como limpeza urbana, abastecimento de água e a heterogeneidade de organização dos municípios¿, afirma. O ministro ainda polemiza, defendendo as fundações estatais de direito privado, e critica o ¿subfinanciamento crônico¿ da saúde.

Sustentar o SUS é o desafio

No discurso de posse, em 2007, o senhor citou como uma das prioridades a integração e a qualificação do SUS e a melhoria dos atendimentos emergenciais. Quais foram as principais ações do ministério nesse sentido? Avançamos muito nesta questão. Além de fortalecer a atenção básica, com a duplicação da cobertura do Saúde da Família e a criação do Brasil Sorridente e do Farmácia Popular, organizamos a rede de assistência ao criar programas integrados que deram agilidade ao atendimento de urgência, como o Samu 192 (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento). Entre 2003 e 2008, a proporção de óbitos em cada mil crianças nascidas vivas baixou de 23,6 para 19. Com o Samu 192, tornou-se possível identificar as unidades de saúde disponíveis para receber os pacientes de forma ágil. As UPAs, que atendem casos de menor gravidade, ajudam a reduzir as filas nos hospitais e estão integradas ao Samu.

Em 2007, o país enfrentava graves problemas com a dengue. Qual é a situação hoje? A deficiência na infraestrutura urbana é o principal fator de vulnerabilidade das cidades brasileiras para a ocorrência de epidemias de dengue. Importantes esforços foram iniciados para minimizar o problema histórico, com a indicação de prioridades de obras de saneamento, principalmente aquelas voltadas para regularização de abastecimento de água, dentro do PAC. Ou seja, o controle da dengue envolve, além do setor saúde, questões como limpeza urbana, abastecimento de água e a heterogeneidade de organização dos municípios. Avançamos também em aspectos relacionados à organização da rede de assistência, com a implantação da classificação de risco dos pacientes, o que é fundamental para evitar a ocorrência de óbitos por dengue.

Outro desafio foi o enfrentamento da pandemia do vírus H1N1. Como você avalia o desempenho do Brasil comparado a outros países? A agilidade nas ações desde o início da pandemia, a constituição imediata de um gabinete de emergência, além das reuniões periódicas de um grupo executivo que envolveu 17 órgãos do governo federal, tudo isso foi fundamental. Sempre seguimos as recomendações da Organização Mundial da Saúde, que têm como base o conhecimento científico e as informações produzidas durante a própria pandemia. Em 2010, com a disponibilidade de vacinas, passamos a contar com mais uma arma. Nesse aspecto, o país se sobressaiu, pois conseguiu realizar a maior vacinação contra a influenza pandêmica dentre todos os países: 89 milhões de pessoas.

Como o senhor avalia o desempenho das unidades de Farmácia Popular no país? Desde o lançamento do Farmácia Popular, em 2004, o governo investe de forma contínua e crescente na implantação e na manutenção das unidades. De 2007 até este ano, os recursos aplicados pelo governo federal aumentaram 86%, de R$ 47,4 milhões para R$ 88,2 milhões. Atualmente, o Farmácia Popular atende cerca de um milhão de usuários por mês. Em pesquisa recente da Presidência da República, o Farmácia Popular do Brasil foi apontado como o programa mais bem avaliado entre todas as iniciativas sociais do governo. Em 2006, o Farmácia Popular foi estendido graças à parceria entre o Ministério da Saúde e a rede privada de drogarias. O ¿Aqui Tem Farmácia Popular¿ já conta com 12,8 mil estabelecimentos. Os medicamentos ¿ para hipertensão, diabetes e contraceptivos ¿ são repassados a cerca de um milhão de pessoas por mês, a preço de custo ou até 90% mais baratos.

Criado em 2004, o programa Brasil Sorridente recebeu mais de R$ 600 mil em 2007. A previsão era que até este ano o investimento chegaria a R$ 2,7bi. Quais foram os resultados alcançados? O Brasil Sorridente foi criado para suprir uma carência histórica por serviços públicos de saúde bucal no país. Só em 2009, os recursos do Ministério da Saúde para o programa chegaram a R$ 643,2 milhões ¿ mais de dez vezes superiores ao investimento feito nesse setor em 2002. Neste ano, até agosto, o governo federal investiu R$ 385 milhões. O impacto direto foi o aumento da cobertura do atendimento de saúde bucal no país, de 35,8 milhões para 91,3 milhões de pessoas nos últimos sete anos. Esta ampliação permitiu um aumento de 57% no número de tratamentos dentários feitos gratuitamente no SUS. A estimativa é que, até março deste ano, mais de três milhões de dentes deixaram de ser extraídos no país.

Como é executada a Política Nacional de doação de órgãos? Apesar do aumento total no número de procedimentos, o número de doações e transplantes nos estados varia. Falta uma melhor distribuição e capacitação dos profissionais de saúde que conduzem esta política? Entre 2003 e 2009, o número de transplantes realizados no Brasil anualmente aumentou 59,2%, e as doações, 85%. No primeiro semestre deste ano, as doações tiveram aumento de 17,7% em relação ao mesmo período de 2009. Além das campanhas, outras ações ajudaram nesses resultados. O volume de investimentos financeiros feitos pelo governo federal no setor triplicou nos últimos sete anos (de R$ 327,8 milhões, em 2003, para R$ 990,5 milhões, em 2009). Vale lembrar que, em setembro, o ministério anunciou um conjunto de melhorias para o setor que totalizou R$ 76 milhões. A variação dos procedimentos nos estados é um desafio histórico que temos buscado enfrentar. Uma das ações é o Programa Nacional de Qualificação para Doação e Transplantes de Órgãos e Tecidos (Qualidott), ferramenta para diminuir essas diferenças regionais.

O atendimento preventivo oferecido atualmente é suficiente? Desde 2003, a cobertura populacional do Saúde da Família ¿ principal estratégia de atenção básica, com foco em prevenção de doenças e promoção à saúde ¿ cresceu 56%. Isso significa que, a cada ano, 5,8 milhões de pessoas passaram a se beneficiar do Saúde da Família, que está em 95% dos municípios brasileiros. O ministério tem como meta ampliar o número de equipes para 35 mil até 2011¿ hoje há 31.423. O desafio é ampliar o Saúde da Família nos municípios com mais de 100 mil habitantes. Para tanto, o governo, em parceria com o Banco Mundial, desenvolve o Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (Proesf). Até 2013, o Proesf terá US$ 167 milhões. Dos 270 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, 177 estão em processo de adesão.

Como está a produção nacional de vacinas e medicamentos? Quando assumi o ministério, trouxe da minha experiência na Fiocruz a necessidade de um novo olhar sobre a saúde. Os laboratórios públicos no Brasil já respondem por mais de 90% do total de doses de vacinas adquiridas para o Programa Nacional de Imunizações. Em 2009, foram produzidas no país 305,6 milhões de doses. Das 28 vacinas oferecidas na rede pública, 17 são produzidas nacionalmente. Apostamos em acordos de transferência de tecnologia, o que nos levou a produzir, desde 2003, seis novas vacinas ¿ contra o vírus Influenza, rotavírus, tríplice viral, raiva, pneumocócica e meningocócica C. O investimento na modernização e ampliação das fábricas chegará a R$ 350 milhões de 2009 a 2012. É uma contribuição fundamental para reduzir a dependência do conhecimento estrangeiro, garantir o atendimento de qualidade e gerar economia aos cofres públicos. Isso sem contar com a consolidação de 17 parcerias público-privadas para a produção de 23 itens estratégicos ¿ medicamentos e DIU ¿, que totalizam R$ 1 bilhão e representam uma economia de R$ 170 milhões por ano aos cofres públicos.

Em agosto, o senhor reafirmou o compromisso da pasta com os Objetivos do Milênio. Como o governo Lula deixará o país em relação aos três objetivos relacionados à saúde, que são a redução da mortalidade infantil, a melhoria da saúde materna e o combate à doenças como a Aids? Há poucas semanas, o Brasil participou da Cúpula da ONU sobre os ODMs (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio), inclusive com premiação pelo esforço promovido pelo governo na erradicação da pobreza e da fome. Vamos alcançar, em 2012, a quarta meta dos ODMs, de redução da mortalidade infantil. Isso acontecerá três anos antes da data-limite. Destaco ainda a melhora da cobertura do pré-natal ¿ com um crescimento de 88,3% de 2007 para cá no número de mulheres que fizeram exames durante a gestação ¿ e o investimento em pílulas e outros contraceptivos, que chegará a R$ 72,2 milhões neste ano. Em relação à saúde materna, incluo entre os avanços as políticas de planejamento familiar, direitos sexuais e reprodutivos, além do lançamento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, em 2003, e do Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, de 2004, premiado pela ONU como modelo de mobilização social. Os números mais recentes indicam que conseguimos estabilizar a incidência de Aids. Desde 2003, houve queda do número de casos em mais de 90% das doenças sexualmente transmissíveis.

Quais são os desafios do país para os próximos anos? O principal é, sem dúvida, o subfinanciamento crônico. A ausência de uma base sólida de sustentação econômico-financeira coloca obstáculos à ampliação da cobertura, além de representar um risco à qualidade dos serviços. Aí reside a importância da aprovação da regulamentação da Emenda Constitucional n° 29 no Congresso, para garantir recursos a um sistema que deve estar disponível à totalidade da população.

Além disso, temos um padrão de gestão arcaico, engessado, especialmente nos hospitais públicos. Temos que permitir a criação de estruturas dinâmicas, com remuneração por metas e avaliação de desempenho. Embora o Congresso não tenha votado o projeto que cria as fundações estatais de direito privado, muitos estados estão se adequando a esse modelo.

Igualmente importante é o compromisso com a valorização profissional. A continuidade dos investimentos na organização e integração da rede também é fundamental. É a única forma de reverter o histórico problema das filas nas emergências. Avançamos, mas os desafios para um sistema que é a única porta de entrada da assistência à saúde para 160 milhões de brasileiros são enormes.