Título: Morales insiste em decisão política para preço do gás
Autor: Leo, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 12/09/2006, Internacional, p. A11

A quatro dias da chegada de uma missão do governo brasileiro à Bolívia, para retomar as negociações sobre o preço do gás fornecido ao Brasil, o presidente boliviano, Evo Morales, disse estar seguro que o Brasil tomará uma decisão política e que um aumento no custo do combustível terá pouco efeito sobre a economia brasileira.

"É um pouco difícil negociar com a Petrobras, tecnicamente, mas não tanto politicamente", comentou Morales, em resposta a uma pergunta do Valor. "Tenho muita confiança no companheiro Lula, que sempre me fala de fraternidade, de solidariedade", disse. "Estou seguro de que, depois de esgotado o debate técnico, haverá decisões políticas."

A afirmação de Morales, de que está convicto de uma decisão política em relação ao preço do gás boliviano, foi uma resposta direta ao anúncio de que o ministro de Minas e Energia do Brasil, Silas Rondeau, irá a La Paz oferecer investimentos e projetos de cooperação, sem aceitar novo aumento no preço do gás.

"Se pede [para] orientar essa negociação sobre o tema de preço, o próprio preço internacional", insistiu. "Sei que o Brasil coopera com a Bolívia... Qualquer preço que subamos, não afeta ao Brasil, se falamos economicamente", comentou, prometendo "racionalidade". Foi o único momento em que falou em Lula, em uma entrevista em que elogiou a cooperação dos presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Argentina, Néstor Kirchner.

Morales, em discurso na véspera, anunciou que o governo tem "muita vontade" de recuperar para o setor público empresas que foram privatizadas no setor de eletricidade e telefonia, e disse que haverá "novidades" em 2007, já em estudo por sua equipe. Ontem, em entrevista a correspondentes estrangeiros, voltou a dizer que o processo de nacionalização iniciado com o setor de gás e petróleo deverá seguir "nos próximos anos" com outras empresas privatizadas.

O anúncio do presidente boliviano ocorre em meio a um inferno astral para o seu governo, que, como reconheceu ontem o próprio Morales, tem enfrentado dificuldades administrativas, geradas pela "falta de experiência na administração", até para executar o orçamento e levar adiante projetos de cooperação oferecidos pela Venezuela.

A Assembléia Constituinte, com que o governo quer estabelecer as novas regras da economia e da distribuição do poder político no país, teve suas discussões paralisadas. Hoje os constituintes tentam resolver o impasse. A oposição recusa a decisão, tomada pela maioria governista, de aprovar os artigos da futura constituição por maioria simples, e só ao final submeter o texto ao plenário com exigência de dois terços dos votos. Os oposicionistas acusam o governo de tentar aprovar a nova Constituição sem deixar espaço para manifestação das minorias.

A insatisfação de alguns setores com a falta de avanços econômicos, e as disputas políticas - algumas dentro do próprio partido governista, o MAS - vem radicalizando o discurso do governo e da oposição, e ampliando o tom dos confrontos entre a população de descendência indígena e a elite local. Na sexta-feira, uma greve nos departamentos (Estados) ocidentais, a parte mais rica do país, contra o sistema de votação da Constituinte seguiu-se a acusações de Morales de um "complô" para derrubá-lo do poder, numa reunião de governadores da região.

Os "paros" (paralisações, com bloqueio de estradas e ruas), arma política tradicional dos indígenas e camponeses bolivianos, se generaliza no país. Na cidade de Copacabana, do departamento de La Paz, um grupo de indígenas paralisou os acessos para reivindicar o controle de uma hospedaria gerenciada pela Igreja; após acordo pelo qual o governo deu parte da propriedade aos manifestantes, comerciantes e líderes políticos da cidade fizeram outra paralisação, para protestar contra a medida.

Hoje, o centro de La paz deve ser paralisado por professores (ontem foram sindicalistas descontentes com o apoio do governo a líderes rivais) que ameaçam greve geral. A oposição também fala em um "paro" de 48 horas, caso não se altere o critério de votação constituinte.

O clima de protestos é envenenado por acusações de corrupção contra membros do governo. Após demitir o presidente da estatal petrolífera YPFB e auxiliares devido a denúncias de contratos irregulares de fornecimento ao Brasil, que estão sob investigação, Evo lida agora com a acusação de um deputado do MAS contra o ministro de Obras, Salvador Rick, a quem acusa de desvio de financiamentos de incentivo industrial. Morales diz ser vítima de um complô das elites "parasitas", que se aproveitaram de vantagens estatais no passado. Ontem, voltou a falar no assunto.

Morales tem, ainda, de lidar com boatos de que vai desapropriar casas e terrenos da classe média e dos ricos. Ontem se encarregou de desautorizar um panfleto com uma fictícia Constituição, atribuída a ele, que prevê esse tipo de medida. "É uma guerra suja."

O processo de nacionalização também está paralisado. O governo previu 180 dias para firmar novos acordos com as empresas, mas, 130 dias após o anúncio, sequer começou a maioria das "auditorias" nas contas, que deveria orientar os negociadores. Isso levanta o temor de decisões arbitrárias do governo. Só duas dessas auditorias estão em fase muito preliminar, uma delas de uma das refinarias administradas pela Petrobras.