Título: A prisão temporária e seu uso como um meio de pressão
Autor: Kauffmann, Carlos
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Dentre as prisões decretadas sem culpa formada (cautelares), a prisão temporária é a mais preocupante, em virtude dos frágeis elementos fáticos que, legalmente, lhe dão suporte. Mas, apesar de ser uma medida de exceção, a prisão temporária tornou-se regra em nosso sistema, principalmente nas grandes operações policiais. A crescente utilização desta modalidade de prisão, porém, demonstra, em não raras hipóteses, o desvirtuamento de sua finalidade: ao invés de servir para possibilitar as investigações do inquérito policial, é utilizada para a obtenção de confissões e delações - muitas vezes falsas - em troca da liberdade.

Larga é a repercussão de investigações que se efetivam com todo o aparato bélico para dar cumprimento a buscas e apreensões e prisões temporárias. A população, de certo modo desinformada quanto à efetiva necessidade da prisão, agradece, acreditando que a polícia está cumprindo seu papel. Mas será que esta afirmação é correta? Quantas prisões temporárias eram, ao tempo da decretação, efetivamente necessárias? Destas, quantas observaram, com rigidez, todos requisitos legais para sua decretação?

Toda prisão cautelar - mormente a temporária - deve estar fundada em pressupostos previamente estabelecidos que exigem rigorosa observância. Em termos mais técnicos, a prisão cautelar somente poderá existir quando presentes o "periculum in libertatis" (risco representado à medida que se busca preservar com a prisão, caso seu destinatário permaneça em liberdade) e o "fumus boni iuris" (verificação, no caso concreto, da viabilidade da imputação do crime apurado).

Maior rigor se exige quanto a medida cautelar utilizada para restringir a liberdade é a prisão temporária. Instituída em 1989 pela Lei nº 7.960, a prisão temporária é uma medida cautelar de natureza investigatória que visa apenas possibilitar a coleta de indícios de autoria e materialidade suficientes para o início da ação penal. É utilizada somente durante o inquérito policial quando, sem ela, as investigações, já iniciadas, não podem prosseguir. Portanto, a prisão temporária não é, como desejam e utilizam alguns, uma imediata resposta ao crime. É uma medida extrema destinada a apurar poucas infrações penais (como homicídio qualificado, estupro, tráfico etc.), entre as diversas existentes em nosso sistema, sempre que se comprove sua indispensabilidade.

-------------------------------------------------------------------------------- A prisão temporária é uma medida excepcional reservada aos poucos casos de extrema e comprovada necessidade --------------------------------------------------------------------------------

Contudo, paralelamente à necessidade de observância aos requisitos previstos na Lei nº 7.960, vivemos dias em que o famigerado movimento maniqueísta da lei e da ordem vem tomando corpo de forma avassaladora. Trata-se de uma indiscutível conseqüência do notório aumento da criminalidade que atinge a todos, principalmente aqueles que se mantém tecnicamente distanciados do meio jurídico. A estas pessoas, que se manifestam de forma genérica por influência da mídia, peço apenas que reflitam sobre a real necessidade da prisão cautelar: ela não é antecipação da pena e, tratando-se de prisão temporária, repito, serve apenas para possibilitar as investigações do inquérito policial. Nada além disso.

Já aos operadores do direito, cabe relembrar a lição de Hélio Tornaghi - talvez esquecida nos dias atuais - para quem, com relação à decretação da prisão, "há alguns perigos contra os quais deveriam presumir-se todos os juízes, ao menos os de bem; o perigo do calo profissional, que insensibiliza. De tanto mandar prender, há juízes que terminam esquecendo os inconvenientes da prisão. A conseqüência é a de tratar pessoas como se fossem cousas, e cousas despresíveis; perigo da precipitação, do açodamento, que impede o exame maduro das circunstâncias e conduz a erros; perigo do exagero, que conduz o juiz a ver fantasmas, a temer danos imaginários, a transformar suspeitas vagas em indícios veementes, a supor que é zelo o que na verdade é exacerbação do escrúpulo".

O calo profissional, a precipitação e o exagero, ainda que se apresentem isoladamente, possuem efeitos devastadores na vida de qualquer ser humano. Prevenir-se é o que basta para que a prisão temporária seja manejada com extrema cautela e rigorosa observância dos requisitos que a autorizam. É o que basta, também, para evitar-se a repetição das indagações acima e o questionamento sobre a legalidade e a necessidade de medidas que esbarram na interpretação de dispositivos legais aos quais o juiz está vinculado.

Assim, os representantes do Poder Judiciário, únicos capazes de concretizar esta restrição da liberdade de locomoção, devem estar sempre atentos para que não sejam meros instrumento de legalização da vontade policial, pois a prisão temporária, assim como qualquer outra prisão cautelar, é uma medida excepcional reservada aos poucos casos de extrema e comprovada necessidade. É uma medida destinada a uma finalidade específica que jamais poderá sofrer qualquer desvirtuamento.

Carlos Kauffmann é advogado, professor de processo penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e autor do livro "Prisão Temporária" pela editora Quartier Latin

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