Título: Mudanças num mundo de fortes contrastes
Autor: Balarin, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2006, EU & Fim de Semana, p. 4

Em março, a Dr. Reddy's, segunda maior empresa do setor farmacêutico da Índia, adquiriu por US$ 570 milhões a Betapharm, quarta maior fabricante de genéricos da Alemanha. Também no primeiro semestre, a estatal indiana de petróleo ONGC Videsh deu partida a entendimentos com a ExxonMobil para adquirir por cerca de US$ 1,4 bilhão a participação da empresa americana num consórcio, de que ainda participam a Shell e a Petrobras, constituído para explorar um campo de petróleo e gás na bacia de Campos. As aquisições de empresas no exterior, seja em países desenvolvidos ou emergentes, marcam a entrada da Índia em uma nova etapa de seu desenvolvimento econômico. Essa internacionalização por investimento direto vem se acentuando nos últimos três anos.

No primeiro semestre de 2006, empresas indianas adquiriram 76 companhias no exterior, com um volume recorde de investimentos, de US$ 5,2 bilhões, segundo dados da Federação das Câmaras de Comércio e Indústria da Índia (FICCI). "Estamos engajados na internacionalização. O investimento em setores estratégicos dá acesso a novos mercados e a novas tecnologias", diz Navtej Sarna, secretário adjunto e porta-voz do Ministério de Relações Exteriores.

É o jeito Índia de ser. Eles vão para o exterior, aprendem como fazer, aperfeiçoam métodos e seguem adiante. Não têm nenhum constrangimento em dizer que querem absorver tecnologia alheia, no máximo possível. Um exemplo é o comentado interesse no álcool combustível brasileiro.

Com crescimento médio anual do produto interno bruto (PIB) de 8% nos últimos três anos, a Índia tem um déficit crescente de energia. São raros os dias em que não há cortes no fornecimento de eletricidade, não só em residências, mas também em hotéis cinco estrelas e até nas grandes companhias de tecnologia da informação. Os programas de investimento para reduzir essa deficiência incluem o aumento da participação da energia nuclear, que hoje contribui com cerca de 4 mil megawatts (MW). O primeiro objetivo é alcançar 25 mil MW em 2020, equivalentes a 10% da geração prevista. Virá depois a ampliação gradual dessa proporção até 25%.

Para desenvolver a infra-estrutura, não apenas em energia, mas também em rodovias, portos, metrô e aeroportos, a Índia tem adotado o modelo das parcerias público-privadas. Em rodovias, os consórcios pagam um valor, assumem a construção da estrada, têm o direito de cobrar pedágio por dez anos e depois devolvem o bem ao governo.

O sistema de parceria foi a maneira encontrada para viabilizar a realização de obras de infra-estrutura, mesmo havendo limitações para o investimento público num orçamento fiscal que carrega o peso de um déficit de 7,5% do PIB (consideradas as posições do governo central e dos Estados). Há o compromisso formal de se chegar a 6% em dois anos. A dívida pública alcança 78,6% do PIB.

"Para desenvolver os projetos de infra-estrutura, as empresas privadas têm vários instrumentos de captação de recursos no mercado de capitais. Do orçamento do governo devem vir os recursos para desenvolver a infra-estrutura social, os gastos para educação e saúde", afirma R. K. Pattnaik, do departamento de política econômica do Reserve Bank of India (banco central).

No ano passado, a Índia aplicou em infra-estrutura física cerca de US$ 28 bilhões (3,6% do PIB), enquanto a China investiu US$ 209 bilhões (9%), segundo relatório do JP Morgan Stanley. A maior parte dos aeroportos indianos é antiga, a rede rodoviária é pequena e mal conservada, os portos são ineficientes. O problema de infra-estrutura, admite Sarna, é uma das causas do volume ainda baixo de investimento direto estrangeiro no país em relação às demais economias do grupo batizado de Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). Em todo o ano de 2005, foram registrados cerca de US$ 5,5 bilhões de investimento direto, quase 1/3 do que recebeu o Brasil. Para o ano fiscal 2006/2007, a previsão é de que o número fique perto de US$ 10 bilhões. "A imagem da Índia está mudando entre os investidores estrangeiros. Nossa população, antes vista como uma fraqueza, é hoje encarada como um de nossos pontos fortes", afirma Sarna.

Com 1,1 bilhão de habitantes - 65% abaixo de 30 anos de idade - , a Índia é um grande desafio. Tem duas línguas oficiais (o hindi e o inglês), mas pelo menos 18 faladas nas ruas. Também são várias as religiões. É o maior Estado democrático da Ásia, como gostam de dizer os governantes. "Poderíamos crescer nos mesmos moldes da China, mas preferimos o desenvolvimento com democracia e liberdade", explica Sarna.

Todos os números são gigantescos. Cerca de 26% dos indianos estão abaixo da linha de pobreza - cerca de 270 milhões sobrevivem com renda mensal entre US$ 6 e US$ 10. É um Brasil e meio de miseráveis. Em cidades como Mumbai, tem-se a sensação de estar em uma grande favela. O esgoto é lançado a céu aberto, boa parte dos barracos são de painéis de madeira e lona, as ruas são esburacadas. Não há um bairro que possa ser chamado de classe alta, como se vê no Brasil. Na mesma rua, um prédio de apartamentos de classe média superior se mistura a barracos, comércio popular e muita sujeira na rua.

Para acabar com a pobreza, o governo indiano calcula que será necessário crescer a taxas anuais de 8% a 10% nas próximas duas a três décadas - o que significaria ampliar os investimentos em infra-estrutura dos atuais 3,6% do PIB para perto de 8%. Se o crescimento da economia se mantiver em 8%, a expectativa é de que seja possível eliminar a pobreza em 2040. Se for de 10%, em 2030.

O governo calcula que, hoje, cinco milhões de pessoas entram anualmente no mercado de trabalho. É preciso criar ao menos 2 milhões de empregos para mão-de-obra qualificada e 3 milhões para a não-qualificada, a cada ano.

O desafio não pára aí. O forte crescimento da Índia tem provocado efeitos colaterais. Em alguns setores, já é possível perceber escassez de mão-de-obra especializada. Em parte, por que engenheiros indianos e profissionais da área de tecnologia, por exemplo, têm boa reputação e são disputados por multinacionais. "Nossos funcionários são assediados por empresas estrangeiras. Por isso, 15% deles, que consideramos estratégicos, têm benefícios como opções de ações da companhia. É uma forma de reter talentos", explica Deepak Morada, responsável pela área de comunicações corporativas da Larsen & Toubro, maior empresa de engenharia e construção da Índia e um dos cinco maiores grupos privados do país, com faturamento previsto para este ano de US$ 5 bilhões.

O número de boas universidades e institutos de tecnologia também não é mais suficiente para atender à demanda de mão-de-obra especializada prevista para a próxima década. Uma das saídas em análise é a facilitação da entrada de grupos estrangeiros para investir em educação superior. Mas também há o problema dos níveis inferiores. Hoje, apesar dos importantes avanços na escolarização dos indianos nos últimos 50 anos, de cada três analfabetos do mundo, um está na Índia.

Nos últimos anos, calcula-se que os indianos gastaram US$ 4 bilhões em cursos no exterior. Um dos principais destinos desses estudantes são as escolas de administração e negócios. "Embora a Índia tenha várias delas, nenhuma figurava entre as melhores. Faltava pesquisa", afirma D. N. V. Kumara Guru, da Indian School of Business (ISB). Criada há seis anos pelo presidente do conselho mundial da McKinsey, Rajat Gupta, a ISB caminha para ocupar posição de destaque no ranking mundial de escolas do gênero. Localizada em Cyberabad, área contígua a Hyderabad, onde estão várias empresas de tecnologia, como IBM e Infosys, a ISB oferece cursos de pós-graduação em administração e negócios, com duração de um ano, a um custo de US$ 30 mil.

"Nossa meta é estar entre as 20 primeiras escolas de negócios do mundo com um terço do custo delas", diz Kumara Guru. A ISB, acrescenta, tem forte intercâmbio com empresas, que investem cada vez mais na formação de seus funcionários. "As companhias indianas estão se internacionalizando e precisam de talentos locais, que conheçam bem o cenário mundial, mas que tenham o 'background' do desenvolvimento indiano."

A formação de pessoal e os incentivos fiscais dados pelo governo local têm levado muitas empresas para Hyderabad, que passou a concorrer diretamente com Bangalore na atração de novos negócios. O aluguel no Hitec, um sofisticado prédio desenvolvido para as empresas de tecnologia da informação, custa ali cerca da metade do que seria pago em Bangalore.

O setor de serviços, que inclui as reluzentes companhias de tecnologia da informação, responde hoje por 60,7% do PIB indiano. A indústria tem participação de 19,3% e a agricultura, de 19,9%. Apesar de contribuir com apenas 1/5 do PIB, o setor agrícola concentra 55% da população do país, distribuídos por pequenas propriedades. "É um dos nossos grandes problemas. A instabilidade também preocupa. Em 2005, a agricultura cresceu 3,9%, vindo de 0,7% em 2004, depois de chegar a 10% em 2003", dizMuneesh Kapur, diretor do Banco Central.

Com esse cenário, não é difícil entender por que a Índia tem adotado posições defensivas na questão agrícola, nas negociação de acordos comerciais multilaterais. No entanto, um país assim heterogêneo e com tantos contrastes está conseguindo se transformar, ainda que os desafios sejam enormes e a velocidade das mudanças, para benefício da população pobre, deixe a desejar. (Raquel Balarin)