Título: Projetos saem do papel, mas rumo não muda
Autor: Safatle, Claudia e Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2006, Brasil, p. A3

Antônio Palocci, ex-ministro da Fazenda, defende um ajuste fiscal de longo prazo e segurou a capitalização do BNDES.. No comando do Ministério da Fazenda há quase seis meses, Guido Mantega desengavetou medidas que dormitavam nos escaninhos do ex-ministro, Antônio Palocci, e imprimiu mudanças perceptíveis na gestão da política econômica. Não alterou os fundamentos - regime de metas para a inflação, superávit fiscal de 4,25% do PIB e taxas de câmbio flutuantes - mas aprovou medidas que defendia como presidente do BNDES e que tinham frontal oposição de Palocci, e, sobretudo, esbarravam em divergências filosóficas com o então secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, hoje vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Exemplo disso foi a operação de capitalização do BNDES, que o ex-presidente da instituição, Carlos Lessa, tentou em vão fazer passar pelo crivo da Fazenda. A reivindicação foi herdada e defendida por Mantega e, enfim, sacramentada em 30 de agosto pelo Banco Central. A partir de uma engenhosa troca de dívida, o BNDES teve aprovado aumento de seu patrimônio de referência de R$ 24,3 bilhões (dezembro de 2005), para R$ 30,5 bilhões, o mais alto de sua história.

Levy barrou as propostas do BNDES por acreditar que o banco não precisava ser capitalizado para aumentar o patrimônio de referência para poder emprestar para empresas de grande porte, como Petrobras, Vale e as usinas siderúrgicas, que têm acesso fácil a créditos externos mais barato. Além disso, Levy tinha visão distinta para as funções do BNDES.

...depois adotada por Guido Mantega, que resiste a uma nova reforma da Previdência em eventual segundo mandato As discordâncias em torno da TJLP - taxa de juros de longo prazo que o BNDES usa em seus financiamentos - foram rumorosas e baseadas em entendimento da Fazenda e do BC, liderados por Palocci, de que a política de crédito direcionado a juros subsidiados reduz a potência da política monetária para conter a inflação.

Aquela equipe econômica resistia em reduzir a TJLP mesmo depois que a Selic começou a cair, em setembro de 2005. Ela ficou por meses estacionada em 9,75% ao ano, em dezembro de 2005 caiu para 9% após muita pressão do BNDES. Já como presidente do Conselho Monetário Nacional, Mantega promoveu duas quedas: em março a taxa foi a 8,15% e em junho, para 7,5%. No final deste mês o CMN terá que definir os juros para o último trimestre.

Às vésperas das eleições, Mantega tem mostrado agilidade para elaborar medidas com apelo popular mas, nem por isso, economicamente condenáveis. Aprovou uma série de facilidades para aumentar a oferta de crédito e um pacote de incentivo à construção civil que o ministro pretende que seja um grande propulsor do crescimento nos próximos meses. Deu seu aval, também, para o socorro financeiro de setores que sofrem hoje com a apreciação da taxa de câmbio, embora já tenha avisado que se tais setores só tiverem sobrevivência com um câmbio muito desvalorizado, não terão futuro.

Palocci, porém, tem a seu favor o fato de ter deflagrado uma série de medidas para baratear e ampliar a oferta de crédito no país, da criação do crédito consignado a todo o arcabouço legal da construção civil, com a figura do patrimônio de afetação, entre outras, que preparou esse setor para um novo ciclo de expansão. Veio de sua época, também, a desoneração de um leque de setores produtivos, devolvendo para a inciativa privada impostos equivalentes a quase R$ 20 bilhões.

A área fiscal é a que agrega as maiores preocupações dos agentes de mercado. Nessa, a posição de Palocci, reformista e defensor de um programa fiscal de longo prazo restritivo e que corte gastos correntes, não encontra o mesmo fervor em Mantega. Ele é mais alinhado com o que poderia ser chamado de um "neo-desenvolvimentista" e pouco convencido de que reformas como uma nova rodada de mudanças na Previdência Social, são fundamentais

Houve deterioração dos dados do superávit primário nos últimos meses, mas os rumos da política fiscal foram mantidos, uma vez que o governo Lula continuou comprometido com a geração, neste e nos próximos anos, de superávits primários de 4,25% do PIB. O que se fez, mas isso começou a acontecer antes de Mantega assumir a Fazenda, foi diminuir o superávit efetivamente de quase 5% do PIB que Palocci vinha fazendo, para o limite restrito da meta. A crise política do ano passado e o enfraquecimento de Palocci perante o Palácio do Planalto, inviabilizou não só a discussão que tomava corpo (de um ajuste fiscal de longo prazo com elevação da meta de superávit para 5% do PIB) quanto a própria gestão na boca do caixa. E o superávit veio, de lá para cá, minguando, mas sem fugir da meta.

Mantega, porém, foi mais condescendente do que Palocci na concordância com um reajuste do salário mínimo simultaneamente à revisão quase geral dos salários do funcionalismo público. Palloci, antes de sair do ministério, havia negociado com Lula uma ou outra dessas medidas e não ambas.

Outra medida que promete causar polêmica refere-se ao uso dos recursos do FGTS para financiar obras em infra-estrutura. Palocci, mas sobretudo Joaquim Levy que era um gestor muito criterioso do caixa do Tesouro e um dos principais formuladores da política econômica até então, se opunha à idéia. O projeto, do Ministério do Trabalho, pretende criar um fundo com recursos provenientes de um suposto patrimônio líquido do Fundo. Levy rejeitava a proposta com uma alegação simples: em vez de patrimônio líquido positivo, o que o FGTS tem é um passivo a descoberto que foi diferido ainda na administração FHC, na casa dos R$ 25 bilhões. Mantega não vê problemas insolúveis na idéia.

O embate entre "monetaristas" e "desenvolvimentistas" é tão antigo quanto a existência do governo, embora sob outras nomenclaturas. Sob esse crivo, hoje os "monetaristas" encontram-se frágeis no governo, e o debate para o segundo eventual mandato de Lula divide os ministros que querem crescer a qualquer custo com algumas poucas vozes que enxergam no desequilíbrio fiscal uma das principais amarras ao crescimento.

Palocci, candidato à deputado federal por São Paulo, já anunciou que, se eleito, trará para o Congresso a bandeira das reformas estruturais necessárias ao ajuste fiscal de longo prazo. Seus encontros com Lula foram retomados e neles a defesa do que estaria fazendo caso tivesse continuado ministro. Em recente jantar no Palácio da Alvorada, com Lula, Rousseff e empresários da construção civil, Mantega ouviu o presidente Lula dizer aos convidados que ele era "bem mais conservador" do que os dois ministros somados. As dúvidas sobre o que será a política fiscal e de crescimento do governo Lula 2, porém, não estão sanadas.