Título: País inicia de fato a nacionalização
Autor: Leo, Sérgio e Lyra, Paulo de Tarso
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2006, Internacional, p. A12

Só agora, quase cinco meses após decretar a nacionalização do setor de gás e petróleo na Bolívia, o governo boliviano começa a tornar realidade as mudanças mais dramáticas anunciadas em maio pelo presidente Evo Morales. Com o recebimento dos tributos adicionais cobrados dos dois principais campos de exploração de gás no país e com uma resolução ministerial que obriga as empresas a passar à estatal YPFB as operações de compra e venda de derivados líquidos de petróleo, o governo Morales fez uma mudança radical no sistema de produção de hidrocarbonetos. Os críticos acusam a mudança de causar grande insegurança sobre o futuro do país.

"O que está acontecendo agora já estava previsto no decreto de nacionalização, expropriaram os ingressos de dinheiro nas refinarias", comenta o consultor privado Carlos Alberto Lopes. "Estão confirmando os impactos negativos sem consolidar os positivos", diz. Um impacto positivo, porém, já se confirmou: com o aumento no preço do gás fornecido à Argentina, o Tesouro boliviano deve arrecadar mais US$ 60 milhões neste ano, que se somarão aos US$ 174 milhões do aumento de tributos sobre os campos administrados pela Petrobras e a francesa Total, que pagaram pela primeira vez em setembro quase US$ 65 milhões.

Mas os investimentos externos na Bolívia, que caem aceleradamente desde 1999, com as turbulências políticas e as indefinições no setor de gás e petróleo, chegam em 2006 ao nível mais baixo da década, pouco mais de US$ 100 milhões. Empresários do setor calculam que, neste ano, os investimentos somaram cerca de US$ 63 milhões, quase um terço do valor do ano passado - o mínimo necessário para manter o volume de produção atual de gás e petróleo.

Nesta semana, Morales confirmou que o governo calcula em US$ 630 milhões a necessidade de investimento para ampliação da capacidade de extração e industrialização do gás, que hoje é insuficiente para abastecer o mercado interno e cumprir os compromissos de fornecimento ao exterior. "Temos boas relações com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que financia algumas empresas, como a Transredes", disse, indicando que espera apoio de financiadores internacionais.

Analistas temem, porém, que as divergências com o Brasil possam afastar possíveis investidores. O plano do Peru, de instalar fábricas para beneficiar e exportar gás pelo Pacífico e os investimentos anunciados pelos outros países da região aumentam a futura concorrência ao produto boliviano.

Morales comemora os avanços na discussão de um contrato com a Argentina para fornecimento de 20 milhões de metros cúbicos de gás ao país, por 27 anos, pelo qual os argentinos se comprometerão a financiar em até US$ 300 milhões uma fábrica beneficiadora do gás e a construir um gasoduto até a fronteira. Os argentinos disseram, porém, que o investimento é condicionados à construção da parte boliviana do gasoduto e ao aumento da capacidade de fornecimento, hoje no limite.

Para Yussef Akli, gerente da Câmara Boliviana de Hidrocarburos, que reúne as empresas do setor, a falta de definição nas regras e o custo imposto pelos tributos, que chegam a 82% na extração do gás, desestimulam novos investimentos. "As empresas não saem do país porque têm algo que não mudou, seus contratos, com direitos e obrigações", diz. Nos últimos dias, investidores do Irã e da Rússia (a gigante Gazprom) visitaram a Bolívia, em busca de informações. "As empresas no país negociam para ver se salvam alguma parte de seus investimentos; os que chegam são pescadores em águas turvas, buscando vantagens", minimiza o consultor Carlos Alberto Lopes.

Segundo dados das empresas privadas, há dois anos havia 38 torres de perfuração em atividade na Bolívia; hoje apenas duas estariam em atividade, e o aumento da produção exigiria a contratação de novas, o que não se dá no curto prazo. Cercada de declarações otimistas pelas autoridades, segue neste mês a negociação com as empresas exploradoras de gás, que, no entanto, não chegou ainda no ponto de maior conflito, sobre as condições de remuneração das companhias, essenciais para as operações. "Ainda não se definiu quem paga quanto e como serão os impostos", confirma Akli.

A nacionalização garantiu ao governo assumir grande parte das ações das empresas antes privatizadas, Andina, Transredes (de transporte) e Chaco. Mas não se definiu, até agora, como a YPFB comprará as ações restantes. As negociações que se iniciaram deveriam se basear em auditorias "transparentes" realizadas nas contas e contratos de cada empresa. O processo foi afetado por denúncias de corrupção e de contratos irregulares que derrubaram o presidente da YPFB Jorge Alvarado e provocaram pedidos de demissão de dois presidentes do órgão regulador, que apontou as irregularidades, no que Morales classificou de mais um complô contra a nacionalização.

O governo tem administrado, com denúncias pontuais de desabastecimento, a rede de distribuição e, em breve, deverá editar novas medidas contra o contrabando de combustível.