Título: Enfim, uma medida moralizadora da Câmara
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2006, Opinião, p. A14

A mesa diretora da Câmara dos Deputados anunciou um corte de 1.018 cargos, dos atuais 2.365 cargos de natureza especial (CNEs), e este número chegará a 1.163 quanto forem substituídos por concursados os 145 que trabalham nessa condição na administração da casa legislativa. Ainda assim, serão mantidos 1.202 CNEs, ligados diretamente à mesa diretora e a lideranças partidárias. A estimativa é de uma economia de R$ 47 milhões por ano com a medida, ou R$ 9 milhões mensais. O ato da mesa deverá ser referendado por um projeto de resolução, submetido ao plenário, de forma a dar maior legitimidade à decisão da mesa.

Embora forças externas tenham impelido a Câmara a essa decisão, é de se louvar a iniciativa do presidente da instituição, Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Hoje existem três comissionados para cada funcionário do quadro estável da Câmara - ou seja, para cada concursado existem três pessoas de confiança de parlamentares exercendo funções sobre as quais não se tem nenhum controle. No total, a casa dispõe de 3.579 funcionários efetivos e 9.821 ligados diretamente a parlamentares, além dos CNEs.

Os CNEs, pelo regimento, poderiam ser lotados em áreas administrativas e técnicas - essa modalidade de contratação surgiu no início dos anos 90, para suprir mais rapidamente órgãos de direção da Câmara de quadros técnicos, até que se fizessem concursos públicos. Foi, no entanto, institucionalizada ao longo do tempo e tornou-se moeda de troca política - os mais de dois milhares de funcionários nessas condições que teoricamente estavam contratados para funções de assessoramento da Câmara não necessariamente estavam exercendo essas funções. Poderiam servir aos deputados, ou simplesmente eram apenas fantasmas, apadrinhados de parlamentares, ou familiares, que ganhavam a remuneração sem dar trabalho em contrapartida.

O mérito de Rebelo foi ter cedido a pressões de fora para acabar, ou pelo menos reduzir, esse tipo de privilégio. Quando presidente da Câmara, o petista João Paulo Cunha, na sua cruzada por uma decisão da casa em favor de sua própria reeleição, não apenas assumiu a defesa desses contratados, como obteve do Tribunal de Contas da União (TCU) um aval para mantê-los. O próprio Rebelo referendou medida protelatória da diretoria da Câmara, que negou informação ao Ministério Público Federal sobre o provimento desses cargos, sob o argumento de que apenas o presidente da Câmara poderia fazê-lo. E Rebelo também fez a sua própria manobra protelatória, ao decidir que apenas poderia encaminhar essas informações se fossem solicitadas oficialmente pelo procurador-geral, Antônio Fernando Souza.

Isso aconteceu no mês passado. Antes que se resolvesse o impasse com o MPF, Rebelo concluiu o levantamento e obteve a unanimidade da mesa diretora para a ação saneadora. A decisão da mesa define também que o funcionário contratado sob essa condição tem que assinar o ponto - antes, apenas um testemunho de um colega bastava para lhe garantir o salário. Decidiu também que são proibidas as contratações, para CNEs, de cônjuges, companheiros ou parentes de parlamentares. E que esses auxiliares devem atuar em Brasília, na Câmara - não podem assessorar parlamentares nos Estados.

Embora seja essa a primeira providência adotada para frear a excessiva liberdade do Legislativo para inchar seus quadros, ainda falta muito. Não se justifica uma casa legislativa, que tem por função elaborar leis sobre os mais variados temas, dispor de um número de cargos de livre nomeação tão superior ao de funcionários concursados. A experiência parlamentar mostra que quadros estáveis, de nível técnico, são muito mais eficientes e necessários do que cargos de livre provimento políticos. Um exemplo é o corpo de funcionários da Comissão Mista de Orçamento do Congresso, que faz uma assessoria altamente especializada e de ótimo nível técnico em uma questão altamente complexa. Uma assessoria técnica eficiente seria muito bem-vinda em questões igualmente complicadas, como as tributárias, de relações exteriores etc. Prover o quadro funcional da Câmara de qualidade técnica é colocar a casa, efetivamente, a serviço das grandes causas nacionais. O que se faz hoje é contrário: coloca-se a estrutura legislativa a serviço dos parlamentares que, uma vez eleitos, fazem política para serem reeleitos, esquecendo-se do compromisso de legislar.