Título: Repetição perigosa
Autor: Leite, Larissa
Fonte: Correio Braziliense, 03/11/2010, Brasil, p. 9

Especialistas discutem entre hoje e sexta-feira técnicas para ouvir o depoimento de crianças e adolescentes. Como as vítimas de abuso contam a história pelo menos oito vezes, ideia é evitar a extensão do trauma

Uma experiência negativa, mas com a obrigação de ser lembrada, contada e recontada. Crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual relatam à Justiça experiências traumáticas de abuso, em média, oito vezes. A repetição resulta, muitas vezes, em prolongamento da dor e desistência dos processos por parte dos abusados. Outro fator que torna ainda mais doloroso o relato de quem teve a sexualidade violentada é a falta de cuidado que envolve o depoimento. Isso porque, geralmente, os depoimentos ocorrem na presença de adultos incluindo o abusador que não foram capacitados para questionar e para ouvir o público em questão.

No Brasil, existem cerca de 40 salas de depoimento especial para crianças e adolescentes, das quais 26 estão em comarcas do Rio Grande do Sul. Elas começaram a ser implantadas em maio de 2003, a partir da inquietação do juiz da Vara da Infância de Porto Alegre José Antônio Daltoé Cezar. Eu não sabia o que eu tinha que fazer, mas simplesmente sabia que não podia colocar uma criança numa sala de audiência sem qualquer preparo, na frente de vários adultos, para falar sobre violência sexual. Ela simplesmente não fala, até porque em 90% dos casos o abusador está no círculo de proteção da família. É alguém que ela gosta, fazendo algo que não é bom para ela, comenta Daltoé.

A sala de depoimento especial que existe em Porto Alegre fica em um ambiente separado do local de audiência onde estão o juiz, o promotor de justiça, o advogado, o réu e um secretário. Na sala especial, planejada de forma mais lúdica, fica apenas o abusado e um técnico capacitado no caso, um psicólogo. Imagens desta sala são transmitidas ao local da audiência, de onde o psicólogo recebe orientação do juiz em relação ao que precisa ser esclarecido. A diferença é que o juiz não pergunta nada. Ele pede para o psicólogo tentar esclarecer um detalhe, e é ele quem conduz todo o depoimento. É um relato muito mais demorado e cuidadoso, explica o juiz. O depoimento da criança ou do adolescente é gravado, degravado e mantido em cartório para evitar a reprodução indevida do material.

Uma importante consequência da implantação dessas salas é a responsabilização do autor do abuso: Nós não procuramos isso, mas a condenação aumenta muito. De acordo com estudos a que temos acesso, a responsabilização do abusador em um depoimento tradicional não chega a 10%. Atualmente, no Rio Grande do Sul, a condenação dos casos ouvidos chega a 70%. Isso pelo simples fato de as crianças, às vezes muito pequenas, serem ouvidas de forma adequada, revela. No estado, cerca de 80% das vítimas têm 11 anos ou menos.

Em debate

A experiência realizada no Rio Grande do Sul será um dos principais exemplos abordados no colóquio nacional O depoimento especial de crianças e adolescentes e o sistema de Justiça brasileiro, de hoje a sexta-feira, em Brasília. O evento, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela ONG Childhood Brasil, irá reunir cerca de 180 juízes, promotores de justiça, defensores públicos, advogados e especialistas do Brasil, da Argentina, dos Estados Unidos e da Inglaterra, na tentativa de disseminar marcos jurídicos na tomada de depoimento especial. Segundo o juiz auxiliar da presidência do CNJ Reinaldo Cintra, ainda existem resistências em algumas esferas do Judiciário na adoção deste tipo de depoimento. Existem questionamentos teóricos e doutrinários em relação aos benefícios do depoimento especial, acredito que mais em função da novidade do que pelo fato de envolver algum problema, afirma Cintra. Segundo o juiz, no entanto, a expectativa é que a partir do colóquio o discurso em relação ao tema seja afinado, dando início a novas aceitações.

Consideramos um momento importante porque instala em caráter inédito o debate entre conselhos vinculados à Justiça. Nossa expectativa é conseguir implementar o depoimento no âmbito do Judiciário para depois expandir para outras áreas. Afinal de contas, será que os especialistas dos conselhos tutelares, das delegacias, estão de fato qualificados?, questiona o coordenador de programas da Childhood Brasil Itamar Batista Gonçalves.

A partir do colóquio, o CNJ pretende elaborar uma resolução para orientar o sistema judiciário na condução de depoimentos especiais. Uma das expectativas dos organizadores é buscar apoio para a elaboração de um projeto de lei que normatize a questão. A Childhood também planeja, para o próximo ano, o financiamento da capacitação de diversos atores do sistema judiciário para a atuação nos depoimentos a formação deverá envolver cursos a distância e presencial. O lançamento de uma publicação sobre técnicas de entrevista está previsto para dezembro.