Título: Parcerias público-privadas: quem garante?
Autor: Ferreira, Luiz Tarcísio Teixeira
Fonte: Valor Econômico, 18/09/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Embora seja clara a necessidade de conjugação de esforços públicos e privados em investimentos de infra-estrutura no Brasil, é fundamental para o sucesso das parcerias público-privadas (PPPs) que os agentes econômicos tenham a dimensão dos riscos que o negócio possui, incluindo o risco regulatório. Não se trata de um julgamento ideológico da Lei nº 11.079, de 2004, mas de avaliação concreta dos riscos jurídicos decorrentes da conformação da lei com a Constituição Federal.

Ninguém recomendará que a sua empresa invista, no mínimo, R$ 20 milhões de recursos próprios em obra ou serviço público por até 35 anos - quase nove mandatos eletivos - sem garantias sólidas de que o Estado a ressarcirá, contra todo o risco de calote estatal. Se nossa recente experiência nas tradicionais concessões de serviços públicos já é marcada por instabilidades geradas pelas mudanças de humor dos governantes ao longo do período de concessão, que acarretam o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, tanto mais se dirá das concessões pelas PPPs. A solidez jurídica do chamado marco regulatório é fundamental.

Há na Lei das PPPs uma série de aspectos muito combatidos e as polêmicas que já provocam certamente irão alcançar o Poder Judiciário. Tão logo comecem as assinaturas das primeiras parcerias, o modelo da Lei nº 11.079 será posto à prova. É importante, assim, levar em consideração a questão das garantias, um dos pontos-chave do novo modelo.

Uma PPP nada mais é que um mecanismo de financiamento privado e de longo prazo do Estado: este não podendo tomar recursos privados, em virtude da exaustão de sua capacidade de endividamento, contrata terceiros que tomarão esses recursos, farão a obra ou a infra-estrutura contratada e a explorarão por período de até 35 anos.

A matéria é de direito financeiro, para a qual a Constituição Federal exige lei complementar, e não lei ordinária, como é o caso da Lei nº 11.079, o que acaba de ser reforçado pela recente Portaria nº 614, de 2006. Caso o Poder Judiciário reconheça que as PPPs têm natureza jurídica de finanças públicas, forçoso seria reconhecer a inconstitucionalidade da Lei nº 11.079 e, conseqüentemente, a nulidade das licitações e dos contratos feitos com base na legislação.

Na Lei das PPPs há uma evidente preocupação em se estabelecer uma rede de garantias em favor do particular, principalmente pelo vulto do investimento e do longo prazo do empreendimento, o que pode influir na relação administração-concessionário. Assim, sem um adequado sistema de garantias em favor do contratado, este teria de se fiar unicamente no senso de responsabilidade de quem elabora o orçamento público para que seu empreendimento receba os pagamentos pelo Estado.

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Para que o cumprimento do contrato de parceria fique imune a injunções políticas, a Lei das PPPs criou um sistema legal de garantias peculiar, aplicável somente às parcerias, mas sem qualquer relação com o regime comum de satisfação de créditos contra o poder público, o chamado sistema de precatórios. Em síntese, a Lei nº 11.079 permite que a administração vincule receitas públicas e institua fundos especiais (bens, dinheiro, títulos etc.) para garantir o parceiro privado contra o calote do parceiro público.

Porém, de acordo com o artigo 163, inciso III, alínea "d" da Constituição Federal, a concessão de garantias por entidades públicas é matéria que só pode ser tratada por lei complementar, como aconteceu com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas, a Lei das PPPs não é lei complementar - é lei ordinária - e por isso seria inconstitucional todo o sistema de garantias por ela previsto. Além disso, o sistema das garantias estabelecido pela legislação não poderia ser aplicado porque estabelece um sistema privilegiado para a satisfação de créditos em favor daqueles que têm contratos de PPP, em prejuízo daqueles que estão hoje nas filas dos precatórios judiciais. Isso pode ser entendido como afronta ao princípio constitucional da igualdade e burla a fila dos precatórios.

O sistema de garantias das PPPs vem sendo posto em dúvida porque a Constituição Federal não admite que bens e receitas da administração pública sejam dados em garantia nos moldes do processo privado de execução de crédito - a não ser as garantias em operações de crédito que envolvam exclusivamente as pessoas políticas: União, Estados, Distrito Federal e municípios.

De nada serviria, então, a organização de um fundo garantidor de PPPs privado, conforme previsto na Lei nº 11.079, porque isso pode ser visto como burla à Constituição: o Estado é Estado e a lógica impede que seja assemelhado aos particulares só para efeitos da Lei das PPPs. Então, se os contratos de PPPs previrem garantias nos termos da Lei nº 11.079, elas não poderão posteriormente ser executadas caso o Estado venha a descumprir as suas obrigações de pagamento, porque a lei que as previu seria inconstitucional, por ofender também o artigo 100 da Constituição Federal. E a declaração de inconstitucionalidade da lei, por simples ação popular ou ação civil pública, impossibilitaria a aplicação completa da legislação, porque os vícios atingem a Lei nº 11.079 exatamente naquilo que ela tem de mais importante: o seu sistema de garantias.

Enfim, a Lei nº 11.079 apresenta aspectos constitucionais muito polêmicos e combatidos e, embora nela se veja um importante instrumento de captação de investimentos privados, é necessário sejam avaliados todos os riscos envolvidos em sua aplicação - e os riscos jurídicos em especial. Será que o marco regulatório, no caso das PPPs, realmente garante o investidor?

Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira é advogado, mestre em direito do Estado e doutorando em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e ex-secretário de negócios jurídicos do município de São Paulo

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