Título: Reformas cuidadosas na China
Autor: Bautzer, Tatiana
Fonte: Valor Econômico, 18/09/2006, Internacional, p. A10

A China deve demorar de 3 a 5 anos para estabelecer o câmbio flutuante, ainda que administrado, acredita o economista-chefe do HSBC para o país, Qu Hongbin. Baseado em Hong Kong, o economista duvida que o aumento do direito de voto da China no FMI resulte em mudança na política cambial. Hongbin admite que há distorções nas estatísticas econômicas chinesas e excesso de investimentos em alguns setores. Ex-funcionário público na China (filiado obrigatoriamente ao Partido Comunista), o economista do HSBC crê que a transição política será lenta, mas que já há sinais de mudança na cultura do partido. A seguir, os principais trechos da entrevista de Hongbin ao Valor, em passagem rápida por São Paulo.

Valor: O sr. crê que o aumento do poder de voto da China no FMI resultará em valorização cambial? Parece ser a expectativa dos EUA...

Qu Hongbin: (risos) Acho que essa visão é muito simplista. Essa mudança no direito de voto já é devida há muito tempo, o Fundo não está fazendo nenhum favor, não só para a China, mas para outros países emergentes. Não faz sentido a China ter o mesmo percentual que a Bélgica, pelo tamanho das economias e sua influência mundial. Essa mudança é fundamental para que o FMI seja um órgão mais representativo. Acho que o governo chinês não verá isso como um favor e não se sentirá na obrigação de mudar a política econômica. Sem a China, o FMI nunca teria um papel relevante de coordenador global. O FMI precisa mais da China do que o contrário.

O governo quer uma política de "flutuação administrada" a longo prazo. Mas nunca disseram acreditar que a moeda esteja subvalorizada, eles querem desenvolver o mercado de câmbio aos poucos.

Valor: Quanto tempo vai demorar para que a moeda flutue?

Hongbin: É difícil dizer. Acho que não se pode esperar nada em meses, vai demorar de 3 a 5 anos. Eles não podem fazer uma mudança grande da noite para o dia.

Valor: Mas o país não pode ser obrigado a fazer algo por causa do protecionismo na UE e nos EUA? O Congresso americano quer instituir uma sobretaxa de quase 30%...

Hongbin: Claro que nos últimos dez anos as exportações de setores intensivos em trabalho aumentaram muito, eletrônicos, têxteis, calçados. Acho que isso não se explica apenas pelo câmbio, mas por fatores estruturais, a enorme disponibilidade de trabalho barato. Há 30 anos, 70% da população chinesa estava em áreas rurais. Agora está havendo uma urbanização gradual, mas o custo de mão-de-obra ainda é muito baixo. Também há grandes investimentos do Estado chinês em infra-estrutura, as novas zonas de exportação, estradas e outros para atrair mais investidores externos. Se olharmos a balança comercial, 60% das exportações são de empresas estrangeiras que produzem na China.

Acho que mesmo que sejam instituídas as sobretaxas essas atividades intensivas em trabalho não voltarão para os EUA. Eles poderão ter déficits até maiores, pois comprariam de locais mais caros. As exportações não seriam tão afetadas com uma alta de preços de 20% a 30%, pois o custo de trabalho é tão baixo que elas continuariam competitivas. O governo chinês, ao mudar o câmbio, afetaria não só o setor exportador, mas a agricultura, que emprega grande parte da população e é ineficiente.

Valor: E a situação dos bancos?

Hongbin: Acho que eles estão mudando aos poucos. Em três anos o governo injetou US$ 60 bilhões para 'limpar' os balanços e está incentivando a listagem em bolsas estrangeiras para aumentar sua transparência. Também estão atraindo bancos estrangeiros para associações, tentando trazer a experiência internacional dos parceiros para ajudá-los a melhorar a análise de crédito e a gestão. O HSBC tem 30% do quinto maior banco de varejo chinês, por exemplo. Eles estão se mexendo rápido para tornar o sistema financeiro mais estável. Os compromissos assinados na época da adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) determinam que o país abra o mercado financeiro para concorrência a partir de 2007.

Valor: Há muita desconfiança no exterior em relação à distorção das estatísticas econômicas da China...

Hongbin: Acho que há um elemento de verdade nisso, a China é muito grande, com 1,3 bilhão de habitantes e 70 províncias muito heterogêneas. A economia está em mudança constante e acelerada. Por isso é mais difícil medir o crescimento econômico, PIB, produção. A margem de erro das estatísticas é maior do que em países menores ou mais estáveis. Não acredito que o governo esteja tentando esconder algo ou que tenha dois livros diferentes, um para os estrangeiros e outro para consumo próprio. Não dá para concluir nada se os números mudam de 15,7% num mês para 15,8%, como se faria num país como os EUA. Eu observo a tendência sugerida pela estatística mais do que uso os números exato.

Valor: Não há um excesso de investimento em vários setores?

Hongbin Acho que existe investimento excessivo na área imobiliária e em infra-estrutura. Um exemplo é o trem Maglev, que liga Xangai ao aeroporto internacional, construído com tecnologia alemã- é considerado o trem mais rápido do mundo. Estima-se que o governo de Xangai leve 116 anos para recuperar o investimento, pois ele foi caríssimo e praticamente não tem usuários. Esse é um exemplo de desperdício. A China não precisa de um trem tão luxuoso assim. O governo está tentando reduzir essa taxa de investimento para níveis mais gerenciáveis.

Valor: Quais são as suas previsões de crescimento?

Hongbin: Esperamos 10,6% neste ano e 8,5% no ano que vem, com a redução dos investimentos e menor crescimento nos EUA, o que provavelmente afetará as exportações. Só uma parte da perda nas exportações será reposta com consumo interno. Será uma desaceleração suave, para um ritmo mais fácil de administrar pelo governo.

Valor: Por quanto tempo será possível manter um regime ditatorial com dinamismo econômico?

Hongbin: Acho que o sistema político vai mudar, mas será uma evolução, e não uma revolução. As chances de uma mudança dramática são muito pequenas. Do ponto de vista econômico, o crescimento está ocorrendo apesar do sistema político, e não por causa dele. Existem alguns fatores negativos para a economia, como a falta de transparência e a corrupção. Mas há alguns casos na história em que países conseguiram crescer sem democracia. De qualquer modo, já vejo uma mudança clara no país.