Título: Bolsa Família e salário mínimo: é preciso cuidado
Autor: Dedecca, Claudio Salvadori
Fonte: Valor Econômico, 18/09/2006, Opinião, p. A12

Nas últimas semanas, o período eleitoral tem alimentado um debate sobre a contribuição do programa Bolsa Família e da política do salário mínimo para a recente redução da desigualdade. Interesses dentro e fora do governo federal têm adicionalmente alimentado a discussão, estimulando uma progressiva controvérsia sobre a eficiência das políticas para o processo. Vem se construindo uma visão que a queda da desigualdade foi decorrente, principalmente, do Bolsa Família, havendo sinais inequívocos da pouca efetividade do salário mínimo.

Apesar da forma contundente como os argumentos são apresentados, eles dão sustentação frágil ao debate proposto. Apropriando-se da expressão popular, é preciso ter cuidado com o andor, pois o santo é de barro. Isto é, a discussão sobre a redução da desigualdade é muito mais complexa e delicada do que parece.

Todo o debate se apóia nos resultados da PNAD 2004, quando o programa Bolsa Família, segundo a pesquisa, atendia 2,4 milhões de 11,6 famílias elegíveis para o benefício. Ademais, os aumentos reais do salário mínimo haviam sido, nos anos anteriores, de 1,4% em 2002, 0,5% em 2003, e 2,2% em 2004. Isto é, os dados da PNAD devem ser tomados com cautela, seja em razão de expressarem limitadamente a cobertura do Bolsa Família, seja porque refletem um período de baixo incremento do valor real do salário mínimo.

É preciso refletir com um pouco mais de atenção sobre a efetividade das políticas. Neste sentido, é importante pontuar:

1) Os possíveis efeitos distributivos do Bolsa Família tendem ocorrer durante sua implantação e ampliação da cobertura, pois o aumento de renda de cada família tende ocorrer uma única vez. Assim, todo efeito distributivo, quando a cobertura for total, dependerá do aumento do valor do benefício. Seja para elevação da cobertura como do benefício, o Bolsa Família se defrontará com as restrições orçamentárias do governo federal. Segundo estimativa realizada a partir da PNAD, os gastos totais do programa poderão chegar a mais de R$ 15 bilhões/ano quando atingir 11,6 milhões de famílias. O impacto do aumento de cobertura sobre os gastos, já tem levado o governo à não atualização do valor do benefício.

2) Quanto à política do salário mínimo, ela tem efeitos cumulativos sobre a renda das pessoas e efeito distributivo. Segundo os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), a população com rendimento inferior a R$ 350,00, na região metropolitana de Salvador, caiu de 52% para 20% entre 2002 e 2006 (ver gráfico). Ademais, estimativa realizada a partir da PNAD 2004 informa que o efeito arrasto da política de salário mínimo entre 2004 e 2007, para um valor de R$ 400,00 em abril ou maio do próximo ano, poderá alcançará, ao menos, 24,7 milhões de pessoas, sendo 50% de ocupados e 50% de aposentados ou pensionistas. É preciso reconhecer que esta política, como o Bolsa Família, encontrará maiores restrições do ponto de vista das contas públicas.

-------------------------------------------------------------------------------- O Bolsa Família é relevante para o processo, mas é limitado para tornar a pobreza e a desigualdade marcas do passado no país --------------------------------------------------------------------------------

3) Adicionalmente, a PNAD 2004 informa que a grande maioria dos ocupados ou aposentados/pensionistas que recebe o salário mínimo possuí uma única fonte de rendimento e que ele tem relevância para o renda familiar. É preciso reconhecer que, mesmo com seu valor recomposto, o salário mínimo ainda apresenta um baixo poder de compra e não garante que as famílias daqueles que o recebem estejam fora da situação de pobreza.

Estas observações permitem pontuar sobre a importância dos programas, mas também da necessidade de um enfoque cuidadoso sobre seus efeitos para a redução da desigualdade.

Qualquer análise mais robusta sobre esta questão necessita tratar das influências sobre a desigualdade das políticas públicas de transferência de renda, do salário mínimo, do crescimento econômico /mercado de trabalho, da queda da taxa de inflação e da redução dos rendimentos reais do trabalho dos estratos acima de R$ 2.500,00 mensais, observada no período recente. É preciso, ademais, considerar para análise o período 2004-2006, quando as políticas foram, de fato, devidamente ativadas.

Mesmo assim, será necessário explicar como o Bolsa Família poderá influenciar a distribuição de renda no tempo, a partir do momento que sua cobertura for completa ou abrangente. E, também, como a superação estrutural da pobreza, enfrentada hoje pelo programa, poderá ser garantida sem crescimento econômico, aumento do nível de emprego e de renda e elevação do salário mínimo, condições necessárias para viabilizar a saída dos beneficiados do programa.

Em suma, uma análise mais cuidadosa mostrará que o combate a pobreza apresenta natureza mais complexa, que aquela que tem reduzido seu escopo ao Bolsa Família. A experiência internacional, rica em evidências, indica que mudanças estruturais nos níveis de pobreza e desigualdade exigem a adoção de diversos instrumentos de políticas públicas, cuja efetividade depende inerentemente de uma trajetória sustentada de crescimento. Portanto, é preciso que o governo atue em várias frentes, sendo o Bolsa Família relevante para o processo, mas limitado para tornar a pobreza e a desigualdade marcas do passado na história social brasileira.

Claudio Salvadori Dedecca é economista e pesquisador do Centro de Estudos de Economia Sindical e do Trabalho (Cesit), da Unicamp.