Título: Hora de retomar as negociações
Autor: Rato, Rodrigo de e Wolfowitz, Paul
Fonte: Valor Econômico, 18/09/2006, Opinião, p. A13

A suspensão da Rodada Doha de negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) desde julho é profundamente decepcionante. Embora se mantenha a retórica do compromisso com a rodada, na prática houve uma rendição aos lobbies defensivos que se atêm ao "status quo".

Mas o status quo é inaceitável. Na agricultura, ele protege os produtores agrícolas mais ricos do mundo, reprimindo as oportunidades aos pobres, a um custo de perto de US$ 280 bilhões a contribuintes e consumidores. Na indústria, ele impede a ascensão dos países pobres na cadeia de valor, pois as tarifas que incidem sobre as suas exportações aumentam com o nível de processamento.

As barreiras existentes entre os países em desenvolvimento também são especialmente altas, impedindo o crescimento acelerado no comércio entre si. Nos setores de serviços, as barreiras comerciais são um obstáculo para o aprimoramento da qualidade e da eficácia, reduzindo o ritmo de crescimento de um setor que poderia prestar uma enorme contribuição para a competitividade e o emprego.

Protelar a conclusão da Rodada Doha acarreta custos e riscos para toda a economia mundial, de forma igual para os países ricos e os pobres.

Primeiro, o atraso implica uma oportunidade perdida para elevar o nível de crescimento global. Com o aumento dos riscos decorrentes da expansão global, o momento é inoportuno para se deixar escapar uma fonte óbvia e sustentada de crescimento. Isto é especialmente crucial para os países pobres, nos quais o crescimento global mais lento significa a continuação da penúria.

Segundo, a percepção de fraqueza e divisão na OMC dificultará ainda mais resistir às pressões protecionistas em todo o mundo, especialmente se a economia mundial se desaquecer. Não podemos esquecer que o sistema de comércio multilateral - e as instituições de Bretton Woods - foi originalmente criado para evitar uma repetição do protecionismo e das desvalorizações competitivas da década de 1930 que arremessaram o mundo na depressão.

Terceiro, as reformas no comércio podem ajudar a atenuar as oscilações macroeconômicas e contribuir para uma decisão metódica dos desequilíbrios globais. Portanto, uma Rodada Doha bem sucedida poderia complementar as iniciativas internacionais de colaboração em curso, com o envolvimento do FMI, para tratar dos desequilíbrios externos existentes entre as maiores economias.

Por último, um bloqueio do processo multilateral desencadeará uma transição ainda mais pronunciada na direção de acordos de livre comércio regionais ou bilaterais (ALCs). Os ALCs não podem substituir a liberalização multilateral. Se forem apropriadamente projetados, poderão beneficiar os seus membros, especialmente se forem combinados com barreiras comerciais reduzidas para todos os parceiros comerciais. Se forem mal projetados, o custo destes acordos - em termos de desvio de comércio, confusão e exigências de capacidade administrativa limitada - geralmente excede os benefícios. Em termos mais amplos, o crescimento dos ALCs mina o princípio central do sistema de comércio multilateral: oportunidades de comércio devem ser oferecidas a todos os países de forma igual. O sistema de comércio multilateral já enfrentou desafios antes, inclusive durante a Rodada Uruguai, no começo da década de 1990, e emergiu com vigor renovado. Acreditamos que ainda é possível que a comunidade internacional obtenha um bom acordo. Mas é necessária uma sensação de urgência.

-------------------------------------------------------------------------------- Países precisam reunir disposição para confrontar interesses defensivos e, então, negociar com flexibilidade para chegar a um acordo de abertura --------------------------------------------------------------------------------

O que deve ser feito, concretamente, para reiniciar as conversações? Países-chave precisam reunir disposição política para confrontar interesses defensivos e negociar com flexibilidade para chegar a um acordo de abertura de mercados. A iniciativa precisará vir do topo, se for preciso discutir dentro de cada país a vantagem de mercados mais livres e se for necessário providenciar ajuda aos que precisam realizar ajustes. Todos os países precisarão fazer concessões: não se pode esperar que um único país suporte o ônus.

As forças pró-mercado podem se manifestar no processo político. Por exemplo, é insustentável que os interesses agrícolas nos países ricos, que representam menos de 4% da taxa de emprego, sejam efetivamente capazes de obstruir um acordo para a abertura de novos mercados para os setores de serviços e de produtos industriais, que representam mais de 90% da taxa de emprego.

Nos países em desenvolvimento, as vozes pró-comércio poderiam ajudar a virar o debate na direção de oportunidades de integração global, em lugar de dar destaque a exceções. A linha de baixo é que as reformas do comércio beneficiam o país que as promove. A Rodada Doha é uma oportunidade para os países se beneficiarem das reformas alheias, assim como das suas próprias.

Enquanto isso, não pode haver nenhuma recaída no progresso já obtido, como a proposta de eliminar os subsídios à exportação agrícola até 2013 e de oferecer acesso isento de quotas/isento de taxas para quase todas as exportações procedentes dos países em desenvolvimento. Nós estimulamos os doadores a se aterem aos seus compromissos de aumentar a ajuda efetiva para o comércio - auxílio para ajudar os países em desenvolvimento a se beneficiarem plenamente das oportunidades de comércio como uma alavanca para o crescimento. Da nossa parte, o Banco Mundial e o FMI estão intensificando conjuntamente a ajuda financeira, técnica e analítica relacionada com o comércio.

Muito já foi alcançado nas negociações, e um acordo de valor significativo está ao alcance. Embora o caminho de volta à mesa de negociações não seja fácil, os obstáculos não são intransponíveis. Todos os países, mas especialmente os principais protagonistas, têm uma responsabilidade de honrar os seus compromissos com a Rodada Doha. Pelo bem dos seus cidadãos, do sistema de comércio global e dos pobres do mundo, é hora de retomar as negociações.

Rodrigo de Rato é diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional

Paul Wolfowitz é presidente do Banco Mundial.