Título: Receita para crescer combina investimento produtivo e público
Autor: Galvão, Arnaldo
Fonte: Valor Econômico, 18/09/2006, Especial, p. A14

O projeto de crescimento de longo prazo preparado pelo Ministério da Fazenda prevê fortes incentivos para o investimento produtivo e também depende de abrir espaço para ampliar o investimento público. O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Júlio Sérgio Gomes de Almeida, defende a adoção de uma política de acumulação de capital, que considere todos os apoios tributários, fiscais, regulatórios e creditícios voltados para o investimento do setor privado. Essa política, diz ele, vai além de uma política industrial. "Não é uma questão cosmética. É mudar o eixo de visão da economia. O investimento, agora, é a rainha", revela.

Um ajuste fiscal de longo prazo, na ótica de Gomes de Almeida, é necessário, mas tem de ser voltado para a acumulação de capital. Portanto, falar de meta de redução de despesas correntes e de outra reforma da Previdência é controverso. "Depende. Temos de estudar os números disso tudo", afirma. E a redução do gasto corrente, alerta o secretário, não pode arriscar as conquistas obtidas na área social.

No curto prazo, contudo, a maior aposta do governo para fazer o país crescer está apoiada nas inovações financeiras e não no aumento do gasto público. "Se acertarmos no crédito imobiliário, vai dar mais um ou dois pontos de crescimento do PIB além do que o país já cresceria", calcula ele. Leia abaixo os principais trechos da entrevista ao Valor.

Valor: Como o país pode crescer mais?

Júlio Sérgio Gomes de Almeida: No curto prazo, o crescimento é dado por três fatores. O primeiro é o que acontece na economia mundial, o segundo é formado pelas políticas de câmbio e juros e o terceiro podemos chamar de política fiscal e inovações financeiras. É esse conjunto que dá a taxa de crescimento. Ela já está dada para 2006, mas os economistas não sabem exatamente qual é. Mas temos de pensar no crescimento de longo prazo, que significa ampliar o que temos atualmente.

Valor: Qual é a importância do cenário externo para isto?

Gomes de Almeida: Mesmo se a economia brasileira ainda fosse fechada, ela seria muito influenciada pelo que acontece lá fora. Atribuo 40% do nosso crescimento às condições externas. Ou seja, é pelos "Meirelles" de lá [pelas políticas monetárias dos diversos bancos centrais] e pela conjuntura de preços internacionais. Nesse sentido, temos de torcer muito para não termos uma redução forte da taxa de crescimento mundial.

Valor: A perspectiva para o cenário internacional é ruim?

Gomes de Almeida: Temos uma interrogação. Sou daqueles que acha que os bancos centrais estão muito atentos, como nunca, para os movimentos de desaceleração súbita das economias. Não vão deixar que haja uma ruptura no crescimento. Sequer saberia dizer se há esse receio ou se há essa possibilidade de ruptura. Mas há, cada vez mais, alertas de que isso poderia acontecer. Acredito que a preocupação seja com a desaceleração do crescimento, na pior das hipóteses, o que não significa ruptura. É o pouso suave. O ambiente externo já foi mais seguro.

Valor: E o Brasil está pronto para enfrentar essa crise internacional, se houver?

Gomes de Almeida: Sim. O Brasil atualmente está com suas contas externas no mesmo nível dos melhores países emergentes. Se tiver crise, o que não acredito, vamos sofrer, mas será algo calculado. Não serão mais aqueles trancos para cada sacolejo externo que ocorria. E são poucos os países que estão reduzindo suas taxas de juros. Então, temos mais espaço para fazer política monetária.

Valor: Qual a importância de câmbio e juros para o crescimento?

Gomes de Almeida: Juros e câmbio não são tudo em uma economia, mas essas são as políticas que mais influenciam no crescimento.

Valor: E o impacto fiscal?

Gomes de Almeida: A política fiscal e as inovações financeiras determinam um crescimento, em geral, de prazo definido. Exemplo disso é o crédito consignado, que é uma inovação financeira. Seja qual for o crescimento da economia internacional, das políticas cambial e monetária, uma inovação como o crédito consignado é capaz, por si só, de gerar crescimento do PIB por um período determinado. Acho que o crédito consignado é de médio fôlego, três quatro anos.

Valor: Qual é o alcance da política de gastos como indutora do crescimento?

Gomes de Almeida: Tem fôlego curto porque, em algum momento, tem de consertar o rombo fiscal. Alguns países têm fôlego grande. O Japão usou por dez anos o gasto público como mecanismo para não deixar a economia sucumbir. Por um ano, o governo pode influenciar o crescimento com sua política fiscal.

Valor: E o impacto das inovações financeiras?

Gomes de Almeida: Nesse caso, o fôlego é de médio e longo prazos.

Valor: Em que o governo está realmente apostando para o crescimento?

Gomes de Almeida: Um pouco para este ano, mas muito mais para 2007 em diante, são as medidas que vão ampliar os créditos imobiliário e consignado.

Valor: No curto prazo, a aposta maior é nas inovações financeiras?

Gomes de Almeida: Exatamente. Erra quem diz que estamos apostando no aumento do gasto público como mecanismo de sustentação. Não é essa a nossa aposta. Não pensamos em usar o mecanismo fiscal como instrumento de crescimento de curto prazo. Pelo contrário. Queremos usar o crédito em geral e o habitacional em particular para dar maior sustentação de crescimento.

Valor: Quais são os exemplos de inovações financeiras?

Gomes de Almeida: O crédito consignado é uma inovação financeira. Além disso, já tivemos as normas sobre o patrimônio de afetação, a possibilidade de alienação fiduciária para imóveis e as medidas de redução dos spreads bancários.

Valor: O que isso agrega à taxa de crescimento?

Gomes de Almeida: Se acertarmos no crédito imobiliário, vai dar mais um ou dois pontos de crescimento do PIB além do que o país já cresceria.

Valor: E qual é a contribuição da política monetária?

Gomes de Almeida: Nossa tendência de juros é realmente de queda e a trajetória de redução da taxa é inexorável. Você pode discutir a velocidade. Mas o nosso horizonte é de um percurso de queda muito acentuada. O risco do Brasil está baixo e vem caindo. Além disso, a inflação dos preços livres está morta. Será de pouco mais de 1% neste ano. Portanto, o horizonte da inflação permite uma queda dos juros nos próximos dois anos. A única coisa que pode impedir essa trajetória é uma reviravolta na economia internacional, o que não está a vista. Minha impressão é a de que vamos passar este ano e o próximo com queda dos juros, o que vai favorecer o crescimento.

Valor: O que vai acontecer com a política cambial?

-------------------------------------------------------------------------------- Estamos abaixo de uma cotação adequada para a taxa de câmbio, mas não estamos longe de ela ser alcançada." --------------------------------------------------------------------------------

Gomes de Almeida: O nosso câmbio está ainda valorizado. Tenho a impressão de que o câmbio é uma coisa factível no momento que estamos passando. Ou seja, obter o câmbio que tenho na minha cabeça é factível com os processos de compra do Banco Central, com a política de redução do endividamento que o Tesouro vem promovendo e com a redução da taxa de juros. Estamos abaixo de uma cotação adequada, mas não estamos longe de ela ser alcançada. Gostaria que fosse mais rápido. A tendência é o governo manter essas políticas de reduções da dívida e dos juros, o que fatalmente levará a um câmbio mais favorável para o exportador.

Valor: Quanto o Brasil pode crescer no curto prazo?

Gomes de Almeida: Dois terços do nosso crescimento de curto prazo vêm dessas políticas de câmbio, juros e da questão externa. O terço restante é política fiscal e inovação financeira. Gosto da idéia de produto potencial. Não gosto ao pé da letra para efeito de política monetária. Mas acho que o nosso crescimento potencial é um pouco maior. Está na ordem de 4,5% ao ano, podendo chegar a 5%. O que a gente precisa é jogá-lo para um nível maior, acima de 5%. Aí, é o que chamamos de crescimento de longo prazo, que depende da taxa de investimento ou de uma brilhante eficiência do capital, que o Brasil já teve.

Valor: Quais são os objetivos de crescimento de longo prazo?

Gomes de Almeida: Podemos aumentar a eficiência do nosso capital, mas apostaria mais na acumulação do capital. Temos de acelerar a nossa taxa de investimento. A Secretaria de Política Econômica está calculando em 20,8% do PIB a taxa de investimento para este ano. Temos de jogar isso para 25%, mas pensando em outro horizonte. Não é com 4,5% ao ano ou, estourando, 5%. Seria chegando em algo como 7% de crescimento do PIB ao ano. É o que eu acho que o Brasil precisa crescer. Precisamos desse objetivo arrojado, mas temos de acumular mais capital.

Valor: Para esse objetivo mais arrojado, o que tem de ser feito?

Gomes de Almeida: Arrumar espaço para ampliar o investimento. Aí, o couro come. A questão é até mais difícil que a discussão dos juros que estão em trajetória de queda.

Valor: Por quê o couro come?

Gomes de Almeida: Porque, na minha opinião, tem de incentivar muito mais o investimento produtivo. Na economia brasileira, esse investimento produtivo vem sendo punido. Tem de pensar em todos os instrumentos tributários, fiscais, regulatórios e creditícios voltados para o investimento. Também é muito importante definir um espaço para ampliar significativamente o investimento público.

Valor: Isso significa dar mais amplitude e intensidade para a política industrial?

Gomes de Almeida: Não. Vai muito além de política industrial. O conceito de política industrial é algo de médio e longo prazos para absorver e recriar competências na área tecnológica. Estou falando de políticas de acumulação de capital e investimento. Nessa política não cabe, por exemplo, definir software como setor prioritário. É muito mais macroeconômico. É aumentar a taxa de investimento, de 21% do PIB para 25%. Não é uma questão cosmética. É mudar o eixo de visão da economia. O investimento, agora, é a rainha.

Valor: Quais são as limitações estruturais para um crescimento maior?

Gomes de Almeida: Podemos crescer 4,5%. No limite, 5%. Quer fugir dessas camisas-de-força? Tem de jogar nossa taxa de investimento para cima. É uma tarefa difícil, mas que o governo gostaria muito de fazer privilegiando o investimento. Não podemos ter medo de falar que devemos incentivar o investimento. Isso é o que diz o ministro Mantega. Mas não com política fiscal, que tem fôlego curto. Não é no gasto público que vamos sustentar o crescimento. Um dos nossos grandes erros é ficar naquela disputa estéril de investimento público versus investimento privado. É estéril porque desde que definimos a privatização, ficou claro que o investimento público não pode fazer tudo.

Valor: Quais são os típicos investimentos públicos?

Gomes de Almeida: Desde a privatização, o Estado tinha de reabsorver suas funções clássicas nas áreas de transporte, logística, infra-estrutura e indústria de base. Ficamos muito tempo discutindo a fronteira entre público e privado. Temos de superar isso. Já temos os instrumentos. São as estatais, o projeto piloto de investimento, as parcerias público-privadas e as concessões. Mas precisamos dar agilidade. Por questões ambientais, burocracia e questões orçamentárias, a lentidão é digna de registro. Ninguém tem culpa e todo mundo tem culpa. Precisamos remover isso para avançar o investimento público. E o investimento privado precisa de incentivo.

Valor: Como o investimento privado pode ser estimulado?

Gomes de Almeida: Com incentivos fiscais, juros baixos, crédito mais fácil, regulação mais clara e regras definidas. Não é política industrial. É política de investimento. Não tem setores prioritários. Eventualmente, se pode dar ênfase em um setor ou outro. É uma política de acumulação de capital.

Valor: Os economistas têm suas propostas para o país crescer mais. Dizem que o governo gasta mal e isso impede reduções da carga tributária e dos juros. Defendem ajuste fiscal de longo prazo e reforma da Previdência. O que tem de ser feito?

Gomes de Almeida: Aí é a pavimentação do crescimento. Isso independe do que nós discutimos. Temos de fazer as reformas necessárias para uma carga tributária menor e um gasto público melhor. Significa criar espaço para o investimento público e também incentivar o investimento privado. No fundo, estamos falando a mesma coisa.

Valor: Então, o sr. concorda com um ajuste fiscal de longo prazo?

Gomes de Almeida: Sem dúvida. Mas voltado para a acumulação de capital. O ajuste é um instrumento, não um fim. O fim é aumentar a taxa de acumulação de capital, de investimento para dar mais crescimento à economia.

Valor: Nesse conceito de ajuste fiscal, podemos falar de meta de redução de despesas correntes e fazer outra reforma da Previdência?

Gomes de Almeida: Depende. Temos de estudar os números disso tudo. Não posso adiantar muita coisa. A minha secretaria não está envolvida no tema da reforma da Previdência. Mas temos de pensar em abrir espaço para o investimento, que é o objetivo final. Temos de melhorar a gestão do setor público. Precisamos de um programa de redução do gasto público, especialmente do corrente.

Valor: E as despesas ou investimentos na área social?

Gomes de Almeida: Não podemos deixar de preservar as conquistas obtidas no gasto social. Isso foi o que deu a novidade no nosso crescimento, que hoje tem melhor distribuição de renda. E não venha me dizer que isso não tem a ver com a política de valorização do salário mínimo. Se você quiser atacar a pobreza no seu coração, é melhor adotar programas com foco, como o Bolsa Família. Eu falo é de distribuição de renda e não apenas em reduzir pobreza.

Valor: Nessa ótica, o salário mínimo é mais importante que o assistencialismo?

Gomes de Almeida: O salário mínimo tem um efeito encadeado que, do ponto de vista regional, é dinâmico e maior que o impacto de políticas compensatórias. Mas não sou contra essas políticas. Por quê o Bolsa Família tem um enorme impacto? Porque é cirúrgico. O economista desenvolveu técnicas onde ele é quase um cirurgião. O segredo vai estar em cortar o gasto corrente preservando o que foi conquistado no gasto social. Não sei se temos de fazer uma nova reforma da Previdência, mas não tenho a menor dúvida que temos de cortar o gasto público. Mas as pessoas têm de concordar que cortar gasto público com crescimento maior é muito mais sustentável.

Valor: O Brasil tem restrições estruturais para crescer mais.

Gomes de Almeida: Não temos mais as restrições externas. Isso veio para ficar. Trocamos o ministro da Fazenda e nada aconteceu. Tivemos uma crise política em pleno ano eleitoral e nada aconteceu. Enfrentamos uma turbulência internacional neste ano, mas nada aconteceu com a economia. O risco-país caiu. É a demonstração que a nossa capacidade respiratória melhorou. Agora, temos de fazer pulsar mais o coração da economia. Ele pode bater mais forte e o pulso é o sistema de crédito. Anunciamos várias medidas e vamos preparar outras porque dá para acelerar esse batimento cardíaco.

Valor: O que é melhor para fazer a economia crescer? Política industrial ou investir em infra-estrutura?

Gomes de Almeida; A política industrial está correta. Os quatro setores escolhidos são o futuro: semicondutores, bens de capital, fármacos e software. O horizonte é de até vinte anos. Vamos adicionar etanol, combustíveis e fontes alternativas de energia. Infra-estrutura faz parte da política de investimento e não concorre com a política industrial. A política industrial não tira um tostão do investimento público tão necessário em infra-estrutura.