Título: Capitais contaminados e suas surpresas
Autor: Vieira, José L. C.
Fonte: Valor Econômico, 19/09/2006, Opinião, p. A14

Há um bom tempo não se falava tanto de "capitais contaminados", expressão que designa, no jargão do mercado financeiro, a parcela do investimento externo direto (IED) cujo ingresso no país não foi comprovado e/ou que não pôde ser registrada no Banco Central (BC), nos termos e para os efeitos da Lei 4131/62 e outras normas e critérios aplicáveis aos capitais estrangeiros.

O tema voltou à cena originando uma matéria neste mesmo Valor ("BC estuda saídas para o capital contaminado das multinacionais"), em 28 de abril, bem como um seminário em São Paulo, em 18 de julho, que, além de algumas surpresas, já geraram debates e analogias num amplo espectro temático, indo das CC5 (contas de não-residentes) à política monetária, tendo por denominador comum a percepção de que decisões marcadas, por exemplo, por baixa adesão à realidade, desacertos ou dogmatismo, sobretudo ideológico, tendem mais facilmente a gerar erros, desvios de objetivos etc, que, não raro, posteriormente "cobram seu preço".

Quanto à CC5, os efeitos de sua utilização de forma inusitada na concretização da "ideologia" da abertura da conta de capitais, na década passada, parecem ainda longe de uma avaliação completa, inclusive quanto à ética no mercado e eventuais desdobramentos.

A propósito, no citado seminário foi apontado o "medo" que hoje presidiria, em muitos bancos, a simples abertura de uma conta do gênero. É como - alguém disse jocosamente - se as CC5 estivessem cobrando o preço da desqualificação que sofreram durante um bom tempo na prática bancária.

Outro preço teria sido cobrado das reservas internacionais, se considerado que poderiam, em tese, ter retido pelo menos uma parcela dos recursos que saíram do Brasil, parte dos quais pode estar agora integrando aquela porção da riqueza de brasileiros a que Gustavo Franco e Demosthenes M. Pinho Neto se referiram, em 2004, como "estacionada no exterior, com ou sem origem tributária e cambial", e cujo volume total "não é conhecido com precisão" ("A desregulamentação da conta de capitais: limitações macroeconômicas e regulatórias"; texto para discussão nº 479, da PUC-RJ; p. 29).

A referência à política monetária, por sua vez, tem a ver com a taxa Selic que, a despeito de denotar pouco vigor como instrumento de controle da inflação brasileira, segue em patamar extremamente elevado e claramente destoante do contexto mundial recente, como uma espécie de "refém" de dogmas monetaristas e de um certo neoliberalismo "à brasileira", aparentemente pouco atento à história do liberalismo econômico e do desenvolvimento. A Selic cobra então o seu preço, por exemplo, no aumento da dívida pública interna e na redução drástica das possibilidades de investimento do Estado.

Finalmente, no que tange aos capitais contaminados, pelo menos três afirmações tiradas da matéria e seminário citados chamaram a atenção: 1) que o BC não saberia o volume total dos capitais contaminados; 2) que algumas empresas possivelmente já teriam remetido esses capitais ao exterior; e 3) que haveria um ato não-normativo do BC amparando remessas da espécie.

A primeira gerou críticas no seminário, na medida em que especialistas avaliam que o BC detinha, em função da dinâmica de registro do IED até 15.08.2000, anterior ao atual sistema declaratório eletrônico (RDE), informações objetivas sobre os percentuais de "contaminação" em cada empresa. Foi lembrada, ainda, uma proposta de que fossem inseridos na base de dados do RDE, por meio de declarações dos interessados, seja para fins estatísticos, seja para efeito de análise jurídica posterior, hipótese surpreendentemente descartada na versão final do sistema.

-------------------------------------------------------------------------------- As contas CC5, de não-residentes, cobram o preço da desqualificação que sofreram por um bom tempo na prática bancária --------------------------------------------------------------------------------

Aos que vêem aí um viés ideológico, há uma dicotomia a sopesar entre, de um lado, eventuais posições equivocadas sobre a abertura cambial capazes de suscitar a remessa desses capitais via CC5 ou não e, de outro, a prudência e a interpretação jurídica adequada indicando que não seria essa, por certo, a posição oficial do BC.

E essa percepção sobre a posição esperada do Banco Central foi, por sinal, corroborada pela matéria do Valor , ao mencionar dúvidas daquele órgão quanto ao patamar normativo necessário à "eliminação" dos capitais contaminados, pertinentes, diga-se de passagem, se considerado que no seminário o tema mostrou-se realmente polêmico, tendo sido cogitada até uma lei complementar.

Daí o espanto causado por um dos palestrantes daquele evento ao citar, de modo bastante ilustrativo, um documento de 2001, do próprio BC, que permitiria, expressamente, remessas desse tipo de capital, valendo-se, para tanto, da mera alteração de uma rotina do sistema RDE. Simples e direto, como foi ali dito.

Novas surpresas surgiriam, menos de um mês depois do seminário, com a Medida Provisória nº 315, em 03/08. Surpresa, primeiramente, para os que não esperavam nada além de um projeto de lei. Depois, para os que tinham como certa a exigência de algum nível de "compensação" cambial ao país pela "descontaminação", seja por constituir critério divisado em situações precedentes, seja por evidências de sua aceitação pelo mercado.

Isso para não falar do conceito de capital contaminado, para além do IED, surgido no item 11 da Exposição de Motivos da MP, por soar mais como um equívoco do que como surpresa.

No mais, se de um lado não se pode deixar de reconhecer os méritos do atual governo quanto à iniciativa de buscar uma solução para a questão, que já atravessou diversos mandatos sem ser adequadamente enfrentada, de outro não se pode deixar de notar a falta de indicação de uma análise sistemática e quantitativa desses capitais, sob prisma macrojurídico (próprio do Direito Econômico), e de eventuais medidas no tocante à possível infringência às normas preexistentes, com ou sem a CC5 ou o tal documento de 2001, suscitada nos citados seminário e notícia.

Portanto, ainda não dá para descartar novas surpresas no tocante ao tema.

José Luiz Conrado Vieira é professor do Ibmec São Paulo, Doutor pela USP e autor do livro "A integração econômica internacional na era da globalização" (Ed. Letras & Letras, 2004