Título: Japão escolhe hoje o sucessor de Koizumi, que mudou o país
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Fonte: Valor Econômico, 20/09/2006, Internacional, p. A11
Aos 64 anos, o primeiro-ministro japonês, que deixa o cargo em 30 de setembro, conquistou reputação de reformador do irreformável. Em seu mandato, o aparelho de governo foi transformado, a economia japonesa emergiu de longos anos de declínio degenerativo e a relação do país com o mundo foi energizado e ganhou ousadia. A despeito disso, Junichiro Koizumi permanece um enigma.
Seu legado, porém, deve marcar o governo de seu sucessor, que será escolhido hoje. O favorito é Shinzo Abe, chefe da Casa Civil de Koizumi. Com 51 anos, ele seria o mais jovem premiê da história do país e o primeiro nascido após a Segunda Guerra.
O triunfo de Koizumi foi conseqüência da guerra que ele combateu contra o seu próprio Partido Liberal Democrático (PLD), no poder. Mas, como herdeiro de uma dinastia política, ele construiu sua carreira no coração do partido.
Koizumi valeu-se de sua popularidade pessoal para liqüidar o sistema de facções dentro do PLD, que até então controlava os primeiros-ministros japoneses. No entanto, a despeito de todo o seu charme, ele é um solitário; janta, de preferência, sozinho.
Sua ambição era melhorar o status do Japão no mundo. Apesar disso, ele persistiu em suas visitas anuais ao santuário Yasukuni, onde são veneradas as almas dos japoneses mortos em guerras, e isso minou grande parte da imagem japonesa junto a seus vizinhos.
Quando Koizumi conquistou a presidência do partido, e assim o cargo de primeiro-ministro, em abril de 2001, o PLD tinha permanecido fora do governo por apenas 11 meses nos 46 anos anteriores.
Melhor dizendo, o PLD tinha compartilhado o poder com os presidentes de grandes companhias e com os burocratas dos principais ministérios. Esse "triângulo de ferro" tinha tratado o setor privado a pão-de-ló, canalizando dinheiro para setores de atividade que, como parte da barganha, asseguravam emprego vitalício e aposentadoria confortável para seus funcionários. E o Japão floresceu. De fato, nas quatro décadas após a Segunda Guerra Mundial, os japoneses escreveram a maior história de sucesso no mundo.
Mas o sucesso não durou para sempre. Quando Koizumi assumiu o cargo de primeiro-ministro, escândalos, corrupção e falta de cobrança de responsabilidades tinham desacreditado totalmente um sistema seqüestrado por grupos de interesses, destacando-se entre eles o PLD. Facções no seio do partido eram instrumentos de apadrinhamento político, e isso tinha enfraquecido sucessivos governos, a maioria dos quais comandados por primeiros-ministros antiquados que cumpriam mandatos curtos e ineficazes.
O sistema revelara-se incapaz de enfrentar a queda da atividade econômica na esteira do colapso nos mercados imobiliário e acionário em 1990, deixando os bancos japoneses com pilhas de empréstimos incobráveis.
Sucessivos governos tinham reagido incrementando os gastos em obras públicas. Isso pode ter protelado uma deflação mais perversa, mas os gastos aumentaram de modo alarmante a dívida pública do país, exatamente quando a população japonesa estava começando a diminuir - assim como a receita fiscal. Para piorar as coisas, os gastos em obras públicas que cobriam o país de concreto apenas fortaleceram os vínculos repugnantes entre os venais políticos do PLD e seus aliados no setor de construção civil. Ao mesmo tempo, essa política consolidou os poderes da burocracia, tornando as mudanças ainda mais difíceis.
Essa inadequação interna do sistema foi acompanhada de enfraquecimento externo. Após a derrota do Japão na Segunda Guerra, os EUA impuseram ao país uma Constituição pacifista que limitou suas forças ao papel de autodefesa e proibiu-as de atuar no exterior. Embora a definição de autodefesa tenha sido gradualmente flexibilizada, o Japão pareceu incapaz de arcar com suas responsabilidades internacionais, exceto por meio de seu generoso orçamento de ajuda, ou mesmo de proteger seus próprios interesses diretos.
Em resumo, em 2001 era lastimável o estado do Japão. O caso de sucesso no pós-guerra tinha se transformado numa história lamentável, marcada por uma "década perdida" para a economia, anos de queda nos preços, insolvência bancária e corrupção política, no plano doméstico, e desrespeito e ingratidão externamente.
Disputando a liderança do partido em 2001, Koizumi chegou com a reputação de homem empenhado em mudança. Ele era um crítico do sistema de facções e obcecado com a necessidade de desmembrar os Correios. Mas ele tinha pela frente Ryutaro Hashimoto, que já havia sido primeiro-ministro e comandava a facção mais poderosa e conservadora do PLD. Aparentemente, Hashimoto venceria com facilidade.
Mas Koizumi derrotou-o, revelando sua maestria ao valer-se da TV e da imprensa popular para apelar diretamente às massas. Isso nunca tinha acontecido antes. Os velhos políticos abominavam o vigor de Koizumi na defesa de mudanças dolorosas ("reformas sem vacas sagradas") e seus ataques ao partido ("mudar o PLD, mudar o Japão"). Seus modos diretos, sua extravagante cabeleira e o uso que fazia da mídia moderna pareciam um insulto permanente à antiga maneira de fazer as coisas. Logo, porém, ficou claro que o fenômeno Koizumi era também bom para o partido. Nas eleições para a câmara alta do Parlamento, em julho de 2001, o PLD colheu seus melhores resultados em uma década.
Pelos padrões japoneses, a agenda do primeiro-ministro era radical. No governo, os postos no gabinete seriam distribuídos por mérito, e não mais por facções. Os gastos em obras públicas seriam contidos e seria limitada a tomada de empréstimos pelo governo. O órgão estatal responsável pelas rodovias, uma grande fonte de gastos visando contrapartidas políticas, seria desmembrado. Os governos locais receberiam mais poder, mas também maiores responsabilidades. Quanto aos bancos, eles teriam de reconhecer a totalidade de seus empréstimo incobráveis e então equacioná-los, para repor a economia em movimento.
Acima de tudo, Koizumi iria privatizar os Correios do Japão. Esse objetivo - no passado compartilhado pelo avô de Koizumi, que tinha sido ministro dos Correios - pode parecer curioso. Entretanto, além de entregar correspondência, o sistema postal japonês é também o maior banco do mundo, com depósitos em contas de poupança e seguros de vida de 320 trilhões de ienes (US$ 2,8 trilhões), canalizados para projetos favorecidos de obras públicas e um elenco de entidades financeiras estatais e sua clientela. Assim como a agência de rodovias, os Correios estavam no âmago das deprimentes relações entre políticos, burocratas e grupos de interesse japoneses. Seu desmembramento em muito contribuiria para eliminar distorções na economia. O público a quem Koizumi apelou pareceu compreender a sua missão.
No início, porém, Koizumi encontrou resistência. O lobby construtor de estradas e seus aliados no PLD colocaram obstáculos às mudanças, revitalizando projetos rodoviários que haviam sido cancelados. Tentativas de privatizar o sistema postal não tiveram melhor sorte. O pior é que muito pouco estava sendo feito sobre a inadimplência que prejudicava os bancos, e o mercado acionário ficava alarmado. Quanto mais caía o mercado acionário, maior o risco de insolvência dos bancos, que tratavam o valor de suas participações acionárias como capital. À medida que a sensação de crise aumentou, em 2001 e 2002, Koizumi parecia só mais um numa sucessão de líderes que pouco havia realizado.
Uma mudança de rumos tomou corpo em 2003. Nesse ano, Heizo Takenaka, um economista trazido por Koizumi para conceber as reformas domésticas, fez progresso com os bancos. Ele endureceu a supervisão bancária e obrigou os bancos e as agências fiscalizadoras competentes a encarar sua difícil realidade. Por fim, foi criado um instrumento para enfrentar a questão dos empréstimos podres nas carteiras dos bancos. As bolsas aos poucos se recuperaram.
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No segundo semestre de 2003, Koizumi pulverizou uma rebelião à sua liderança no partido e venceu uma eleição geral com boa folga, a despeito da revitalização do Partido Democrático do Japão (PDJ), de oposição. Um novo gabinete ministerial pareceu criar um senso de finalidade. Grande parte do primeiro gabinete de Koizumi tinha sido herdado. Mas o segundo foi obra sua. Saiu de cena o velho ministro das Finanças, de 81 anos, e entraram alguns jovens reformistas, como Nobuteru Ishihara, que assumiu o infame Ministério de Uso do Solo e Transportes. Shinzo Abe, um aliado, foi nomeado secretário-geral do partido.
A recuperação, que havia começado tentativamente em 2002, pareceu mais assertiva à medida que as empresas começaram a voltar a investir. Com a reanimação dos lucros das companhias, o estoque de empréstimo podres dos bancos começou a cair. Equivalentes a mais de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) em março de 2002, eles estão em 2% hoje - uma queda que Takenaka acreditava que levaria dez anos. Os maiores bancos saldaram suas dívidas com o governo. Eles estão voltando a oferecer crédito à economia e, assim, a estabelecer as bases para o crescimento futuro. Essa é um das maiores conquistas da era Koizumi.
Em outras frentes, porém, o governo de Koizumi patinou. Operadores experientes rapidamente manobraram de modo a anular os esforços dos neófitos convocados para encaminhar as privatizações: Naoki Inose, um escritor, na agência rodoviária, e Takenaka para os Correios. Propostas ousadas foram diluídas. Embora se tivesse chegado a um acordo para que a agência rodoviária fosse dividida em seis, estas continuariam na esfera estatal. Quanto aos Correios, em vez de extinguir totalmente suas funções de poupança e seguros, elas permaneceriam como operações divididas, e sua privatização ficaria para 2017. E, apesar dessas grandes concessões, em agosto de 2005, após uma disputa acirrada, o Parlamento rejeitou por estreita margem o plano para os Correios.
Foi um momento de definição, um momento que Koizumi encarou com satisfação. Ele convocou uma eleição geral inesperada. O PDJ estava na defensiva: embora reformista, ele havia decidido - desastrosamente, como depois ficou patente - opor-se à privatização dos correios por razões táticas.
Mas a eleição foi um desafio também à velha guarda do PLD. Koizumi expulsou 37 deputados rebeldes, que tinham votado contra a privatização, e pinçou aliados para concorrerem contra eles. O confronto, Koizumi disse ao país, estava centrado em um único tema da reforma: a privatização dos Correios. O PLD recuperou uma maioria de dois terços e fez prevalecer sua coalizão de governo.
Com a autoridade de Koizumi então incontestável, os projetos de lei sobre Correios e rodovias foram rapidamente aprovadas pelo novo Parlamento. Apesar de os Correios ainda não terem sido privatizados, diz Yasuhisa Shiozaki, vice-ministro de Relações Exteriores e uma estrela em ascensão, Koizumi, de um só golpe, destruiu a mais poderosa máquina política no país e pôs fim à política clientelista.
Ele também tomou iniciativas para "normalizar" as políticas externa e de segurança, contestando os limites impostos ao Japão por sua Constituição pacifista instituída no pós-guerra, tendo enviado navios-tanque de abastecimento ao Oceano Índico e soldados para o Iraque. Ele irritou a China e a Coréia do Sul ao visitar o santuário de Yasukuni, em Tóquio, onde - entre os milhões de japoneses mortos em guerras -, são homenageadas as almas de alguns criminosos de guerra.
Surgiu, porém, um novo enigma. Embora a eleição tivesse colocado as reformas no centro do cenário político, e apesar de Koizumi estar no auge de sua forma, ele rapidamente perdeu interesse em novas lutas, dizem colegas. No início deste ano, a comissão que ele havia encarregado de reformar a agência rodoviária votou pela construção de 9 mil quilômetros de vias expressas, originalmente propostas no fim da década de 90. O custo total para os contribuintes será de 3 trilhões de ienes. Mas nem um gemido foi emitido pelo primeiro-ministro.
Koizumi deve deixar a presidência do partido neste mês, e portanto o cargo de primeiro-ministro. Se quisesse, poderia exercer influência nos bastidores, mas seu comportamento recente sugere que não fará isso. Koizumi passou grande parte do início do segundo semestre em viagens de "despedida", entre elas uma a Graceland (antiga residência de Elvis Presley, de quem é admirador), com o presidente George Bush. Koizumi diz que pretende dedicar-se à música e aos prazeres da mesa - sem falar em reassumir sua vida privada - e nada há para que duvidemos dele.
Será que o zelo reformista de Koizumi perdurará depois que ele se for? É um sinal de mudança o fato de que seu provável sucessor é Shinzo Abe, de apenas 51 anos. Provavelmente, ele vencerá a eleição que escolherá hoje o próximo líder do PLD. Atualmente chefe da Casa Civil, Abe é um protegido de Koizumi. A maioria de seus principais aliados - Hidenao Nakagawa, que comanda o conselho de pesquisa de políticas do PLD, Shiozaki, assim como Ishihara, Taro Aso, o ministro de Relações Exteriores, e Kaoru Yosano, o ministro da Economia - desempenharam papéis reformistas durante a era Koizumi.
Abe se diz comprometido com o avanço da desregulamentação para fomentar crescimento. Mas observadores prevêem dificuldades. Embora telegênico, Abe não tem o carisma e a autoridade de Koizumi. Ele necessitará cooperação no âmbito do partido para construir um consenso que o permita governar, do contrário correrá o risco de uma revolta do partido.
Visto de fora, diz Gerald Curtis, da Universidade Colúmbia, nos EUA, o procedimento se parece muito com o tipo de conchavo político que o eleitorado hoje abomina. Isso torna a reforma incerta.
É também possível uma visão mais otimista, enxergando as reformas de Koizumi no contexto de outras mudanças impostas à maneira como o Japão é governado. Em meados da década de 90, por exemplo, foi abolido o sistema eleitoral com mais de um representante por distrito, e passou a vigorar o financiamento público dos partidos políticos, o que acelerou o declínio das facções e o peso do poder econômico na política. O próprio Abe está deixando sua facção, assim como o fez Koizumi, decisão inconcebível quando os caciques políticos mandavam e desmandavam, não faz muito tempo.
Outra mudança está na modo como cresceu a autoridade do cargo de primeiro-ministro no âmbito do governo, e do secretário-geral no partido no poder, posto agora ocupado por escolha do primeiro-ministro. Isso significa, em primeiro lugar, que o crescimento de um político depende mais das demonstrações de lealdade à liderança que a determinada facção.
Um aspecto crucial é que o novo esquema induz partido e governo a consenso em torno de políticas públicas. Em julho, por exemplo, chegou-se a um acordo sobre o modelo fiscal para equilibrar as finanças japonesas. O plano prevê cortes de gastos de até 13 trilhões de ienes por ano até 2011. "Haja o que houver", diz Nakagawa, o poderoso diretor do conselho de pesquisa de políticas, "vamos incorporar essa decisão de julho em cada orçamento". Ele insiste em que a reforma agora agora corre agressivamente nas veias do partido.
Quanto à política externa, os aliados de Abe dizem que a nova confiança criada por Koizumi veio para ficar, e que Abe terá maior sucesso em explicar isso aos vizinhos do Japão. Apesar de Abe, como Koizumi, ser um visitante regular do santuário de Yasukuni e um defensor de uma segurança nacional mais vigorosa, ele parece pensar a política externa de modo mais racional do que o estranhamente emocional Koizumi. Shiozaki diz que Abe sabe que visitar Yasukuni como faz Koizumi apenas agravaria o mal-estar com os vizinhos do Japão. Há dez dias, o vice-ministro de Relações Exteriores do Japão esteve nas capitais da Coréia do Sul e da China como parte de uma súbita torrente de atividade diplomática entre os três países. Takao Toshikawa, editor do boletim "Tokyo Insideline", prevê que Abe, imediatamente após tornar-se primeiro-ministro, quebrará o gelo com uma visita a Pequim para encontrar-se com o presidente Hu Jintao.
Abe, levando adiante a revolução de Koizumi, poderá ter vida curta como primeiro-ministro. Por exemplo, seria improvável sua sobrevivência a uma derrota do PLD nas eleições de julho próximo para a câmara alta do Parlamento, que já causa preocupações ao partido. Mas, se o PDJ vencer, será com base em uma plataforma reformista - a oposição não repetirá o erro de se opor a mudanças. Em outras palavras, mesmo em caso de derrota do PLD, o proveitoso legado de Koizumi permanecerá perceptível.