Título: O gasto debate sobre o gasto público
Autor: Kupfer, David
Fonte: Valor Econômico, 20/09/2006, Opinião, p. A13

Não há dúvida de que o debate sobre a qualidade do gasto público no Brasil é relevante, em especial em época de eleições gerais. O problema é que exatamente nesses momentos a qualidade do debate travado no país deteriora-se perigosamente. Oposições e oposicionistas insistem que as despesas correntes saíram de controle em função de políticas públicas eleitoreiras, desprovidas de racionalidade na concepção, de eficácia no desenho dos instrumentos e de eficiência na implementação, sem considerar que correspondam a ações meritórias visando reduzir a enorme desigualdade social que se acumulou no país. Governo e governistas se esforçam em mostrar que os gastos públicos, embora crescentes, estão sob controle, sem tampouco admitir que, em função da diretiva de cumprimento da meta de superávit fiscal primário, essas despesas adicionais vêm tendo como contrapartida a manutenção do investimento público à míngua.

Não é de hoje que o Estado brasileiro está sub judice. Esse não é um julgamento fácil porque lida com um tema recheado de paradoxos e contradições. Pela ótica do custo, o Estado brasileiro é gigante, obeso. Medido pelo tamanho da carga tributária, pesa nada mais nada menos do que 38% do PIB, um valor muito grande quando comparado ao vigente em países com grau de desenvolvimento semelhante ao nosso. Já pela ótica da efetividade da ação pública, esse mesmo Estado é anão, esquálido, detentor de uma capacidade comparável a de países pobres da Ásia e da África, haja vista a situação precária em que se encontram a educação, saúde, segurança, estradas e tantos outros setores básicos para a população.

Os advogados da tese da ineficiência do Estado manejam esses números como uma evidência inquestionável de desperdício de recursos. Porém, esquecem que dentro do Estado brasileiro convivem dois entes muito distintos: um "Estado devedor" e um "Estado provedor". Segundo dados do Banco Central, o "Estado devedor" carregava um passivo de cerca de 50,5% do PIB em junho de 2006, que o forçou a destinar a bagatela de R$ 158,7 bilhões ao pagamento de juros nos 12 meses completados nessa data. Como em proporção ao PIB os gastos se mantiveram na média histórica recente, que é superior a 8% do PIB, uma conta fácil de ser feita mostra que o "Estado devedor" absorve 12,5% do PIB (8,25% do PIB com juros e 4,25% do PIB com a meta de superávit requerida por causa disso), deixando apenas cerca de 25% do PIB para que o "Estado provedor" atenda as vastas demandas econômicas e sociais da nação.

Com relação ao "Estado provedor", o fato é que não há nenhuma novidade no front fiscal brasileiro. Há dez anos as finanças públicas exibem um comportamento de expansão sincronizada das receitas, via aumento da carga tributária, e das despesas não-financeiras relacionadas ao custeio da máquina pública e às transferências. Segundo dados do Banco Central de maio de 2006, nos últimos doze meses o resultado primário do setor público como um todo, incluindo União, Estados e municípios e empresas estatais, atingiu R$ 89,9 bilhões, mantendo-se em níveis próximos a 4,5% do PIB, compatível, portanto com a meta de superávit de 4,25% do PIB que vem balizando a política fiscal recente. Como as despesas correntes evoluíram um pouco mais rápido que as receitas, a equação necessitou, mais uma vez, ser equilibrada por meio da contração das despesas de investimento.

-------------------------------------------------------------------------------- O regime fiscal está esgotado porque não há espaço para o crescimento da carga tributária e a agenda econômica está voltada ao investimento público --------------------------------------------------------------------------------

Com a repetição desse tipo de ajustamento ao longo dos últimos anos, os investimentos públicos apresentam uma trajetória sistemática de queda, estando hoje inferiores a 0,5% do PIB, quando já foram superiores a 3,5% do PIB no passado. Em relação ao gasto não-financeiro do governo, o investimento público hoje não ultrapassa a casa dos 3%, quando há 20 anos oscilava entre 30 e 40% do total. Por exemplo, os investimentos da União em transportes, que eram de cerca de 1,5% do PIB na década de 1970, atualmente correspondem a somente 0, 18% do PIB (dado de 2005).

Preocupante é o fato de que a taxa de investimento da economia brasileira está estagnada há vários anos. Segundo o IBGE, a taxa de investimentos no país retornou para níveis inferiores a 20% do PIB no segundo trimestre de 2006, após tão-somente dois trimestres em valores ligeiramente superiores a essa marca. Estima-se que, para crescer de forma sustentada, o Brasil precisa de um esforço de formação de capital da ordem de 25% do PIB ou mais. Mesmo o mais otimista dentre os privatistas deve ficar preocupado com tal nível de contração do investimento público, pois não há como não reconhecer que o Estado brasileiro continua exercendo um papel importante na liderança dos investimentos em infra-estrutura, logística, educação, ciência e tecnologia e outros setores-chave para o desenvolvimento econômico nacional.

O atual regime fiscal, portanto, está claramente esgotado porque, ao que tudo indica, não há mais espaço para o crescimento da carga tributária (em proporção do PIB), ao mesmo tempo em que a agenda da política de crescimento econômico está tornando cada vez mais premente a necessidade de retomada da capacidade de investimento público.

O debate eleitoral em andamento passa a sensação de que todos os atores políticos reproduzem o mesmo discurso, deixando uma falsa impressão de que, enfim, os diagnósticos e ações tornaram-se conhecidos e consensuais e de que, para a população, tudo se resume em encontrar as forças políticas mais capazes para colocá-los em prática. Infelizmente, conhecidos e consensuais são apenas os fatos: por exemplo, todos concordam que o país gasta pouco e mal em educação. Mas o que é gastar bem? Decisões dessa natureza são eminentemente políticas e dependem de propostas claras realizadas pelos postulantes ao governo.

É bastante evidente que o atual regime fiscal não é sustentável e que reformas serão necessárias em curto espaço de tempo. Porém, mais difícil do que pura e simplesmente resolver uma equação fiscal, é enfrentar e superar o problema da escolha de prioridades e de como legitimá-las socialmente. É frustrante a constatação de que o processo eleitoral não está proporcionando à sociedade a necessária oportunidade de avançar nessa direção.

David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras. www.ie.ufrj.br/gic E-mail: gic@ie.ufrj.br)

David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras. www.ie.ufrj.br/gic )

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