Título: A segunda fase
Autor: Sampaio , Adriano V.
Fonte: Valor Econômico, 29/06/2012, Opinião, p. A14

O governo vem há alguns anos empreendendo medidas a fim de "mudar a cara" das práticas bancárias no Brasil. Em 2008, a expansão do crédito pelos bancos públicos em resposta à retração dos financiamentos pelos bancos privados foi um importante movimento nesse sentido. O resultado foi um aumento do "market share" dos bancos públicos, sem o tão propalado aumento da inadimplência.

Há algumas semanas, um segundo movimento foi colocado em prática e o governo decidiu enfrentar com mais força o problema do spread bancário, já que este vinha se mostrando inflexível mesmo com a redução da taxa Selic iniciada em agosto de 2011. Entre as justificativas dos bancos para o elevado spread estavam fatores como insegurança jurídica para liquidação de garantias, altos impostos, elevados compulsórios e inadimplência.

Os bancos públicos reduziram suas taxas de forma a forçar seus concorrentes do setor privado a fazerem o mesmo, sob pena de perderem "market share". Embora a ação tenha sido criticada sob o argumento de ter sido baseada em critérios políticos, sem levar em conta critérios técnicos e pondo em risco bancos públicos, os bancos privados logo seguiram o mesmo caminho e reduziram seus spreads.

Uma das possibilidades é a adoção de estratégias com maior potencial de lucro e que envolvem maior risco

Apesar de ainda cedo, podemos fazer algumas ponderações sobre as últimas medidas tomadas pelo governo. Primeiramente, os bancos que atuam no Brasil têm uma rentabilidade extraordinária. É necessário, portanto, observar a reação dos mesmos à possibilidade de terem suas taxas de lucro reduzidas: se simplesmente aceitarão a nova realidade ou se buscarão novas fontes de ganhos para que seus lucros se mantenham nos níveis atuais. As tarifas cobradas por serviços já sofreram aumento, conforme noticiado no Valor ("Bancos intensificam o aumento de tarifas" em 14/5).

Mas o aumento de tarifas por si só não é suficiente para manter o atual nível de rentabilidade dos bancos. Dentre as ações que podem ser adotadas estão a melhoria de seus produtos, a reforma de suas estruturas, expandindo o crédito, e outras medidas que seriam benéficas. Mas outra possibilidade de resposta deve ser observada com maior cuidado: a adoção de estratégias com maior potencial de lucro e que, necessariamente, envolvem maior risco.

Nos EUA, a intensificação da concorrência bancária em um cenário de baixíssimas taxas de juros e regulação frouxa levou as instituições financeiras a se engajarem em operações com maior risco. Uma delas foi a expansão agressiva de sua base de clientes, estendendo crédito a segmentos mais arriscados até chegarem ao chamado subprime. Para viabilizar tal expansão, os bancos promoveram a securitização de seus ativos de maior risco, retirando-os de seus portfólios e espalhando-os pelo sistema. O resultado foi uma bolha de crédito cujo estouro provocou a crise atual. Nada disso, porém, teria sido possível se o sistema financeiro não tivesse passado por um processo de relaxamento da regulação dos anos 1980 até os anos 2000.

Assim, no caso dos bancos buscarem a manutenção da alta lucratividade de que gozaram até então, uma segunda fase da estratégia do governo teria de ser posta em prática: a de garantir que a busca por rentabilidade não se transforme em uma concorrência predatória, com os bancos adotando estratégias que coloquem em risco a estabilidade do sistema financeiro nacional. Enquanto estavam em uma zona confortável, lucrando facilmente com títulos públicos lastreados na taxa de juros, a forte regulação doméstica era aceita sem grandes problemas. Porém, é factível que os bancos privados comecem a pressionar o Banco Central (BC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pela redução de impostos e de compulsórios, e pelo relaxamento de restrições que entendam ser importantes para a compensação de perdas decorrentes de menores spreads. É necessário que os reguladores brasileiros fiquem atentos a medidas por parte das instituições bancárias que possam aumentar exponencialmente o risco de suas operações na busca incessante pela recuperação de altos níveis de rentabilidade.

Entre tais estratégias podemos citar a extensão de financiamentos a clientes de maior risco, que pagariam maiores taxas de juros, mas que também podem incorrer em maior nível de inadimplência. E, da mesma forma que seus pares americanos, os bancos poderiam "limpar" seus balanços securitizando tais ativos, o que, mais do que diversificar, "espalha" o risco entre os agentes, tornando-o sistêmico. Como forma de reduzir custos, uma maior captação de recursos no exterior também pode ser uma estratégia adotada, o que pode levar ao descasamento de moedas e, em caso de forte valorização do dólar, vir a promover um repentino aumento de passivos bancários.

Essas podem ser estratégias ainda fora do horizonte dos bancos domésticos, de difícil implementação no país ou inviáveis diante da legislação atual. A liquidez em mercados secundários para ativos securitizados, por exemplo, ainda é baixa no país, e as exigências dos bancos para tomadores de crédito ainda são altas. O que se ressalta aqui, no entanto, é que a posição confortável em que os bancos atuavam foi sacudida pelo governo e ainda não sabemos como as instituições financeiras irão reagir. O sistema financeiro nacional tem forte poder de pressão e o afrouxamento da regulação bancária pode se dar de forma mais silenciosa que a estratégia governista de redução dos spreads, dado o caráter mais técnico que tal discussão envolve.

O Brasil tem o privilégio de ter bancos públicos fortes o suficiente para guiar os rumos do mercado, e o governo está no caminho certo ao utilizá-los como instrumentos de política de crédito e de fomento da concorrência. Mas para que esse caminho continue a ser percorrido, o Banco Central terá que ser ativo (e pró-ativo) na regulação e supervisão das instituições, que tentarão a todo custo manter a sua margem de lucro. Mas, sem resistir a tais investidas, a transformação do setor bancário em um instrumento funcional ao desenvolvimento do país não estará completa.

Adriano Vilela Sampaio é economista, doutorando em Teoria Econômica pelo IE/Unicamp e visiting student da Balsillie School of International Affairs (Canadá).

Olivia Bullio Mattos é economista, doutoranda em Teoria Econômica pelo IE/Unicamp e professora da Facamp