Título: Os trabalhadores e a crise na Volks
Autor: Nogueira, Arnaldo M.
Fonte: Valor Econômico, 21/09/2006, Opinião, p. A14

A crise da Volkswagen e suas relações macropolíticas e sindicais envolvidas na situação foram objeto de discussão na mídia. A pergunta era se o BNDES estava certo em suspender a liberação de empréstimo de R$ 497 milhões à Volks.

A atitude não apenas foi correta, mas, também esperada de um governo de origem social e política no mundo do trabalho industrial da região do ABC. E mais, na abordagem do problema é importante destacar o resgate do interesse nacional e da autonomia de decisão quanto à política industrial mais adequada para o Brasil e para os trabalhadores de modo a superar as práticas subordinadas e a falta de comprometimento social das empresas multinacionais.

Hoje o ABC é bastante diferente do passado porque a maior parte da força de trabalho metalúrgica de grandes empresas e da cadeia produtiva da indústria automobilística foi abolida, e a economia de serviços tem se expandido como geradora de empregos e valor no novo padrão de acumulação flexível do capital. Muitos metalúrgicos do passado devem estar sobrevivendo do trabalho precário em serviços e comércio.

A passagem do padrão fordista à brasileira ao padrão flexível da empresa enxuta, o que se chama de reestruturação produtiva, foi objeto de negociação em alguns setores - caso da região do ABC - entre trabalho e capital, entre sindicato e empresas, nos últimos dez anos. O saldo dessas negociações, dependendo da ótica adotada, pode ser bastante questionável, quando se observa a redução brutal da força de trabalho na maioria das empresas que adotaram a política de reestruturação flexível, como o caso da Volkswagen no Brasil. De um outro lado, para a competitividade da empresa os ganhos de produtividade e lucratividade podem ter sido geométricos.

O papel histórico do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e das organizações no local de trabalho - as chamadas comissões de fábrica - era antes entendido como de vanguarda, em torno de um projeto de transformação social e política sob a ótica do trabalho, mas hoje sua marca está na capacidade de negociação conflitiva ou de cooperação antagônica dos processos de reestruturação produtiva. Hoje o sindicato é uma referência na promoção de um padrão civilizado das relações de trabalho na perspectiva de negociações e arranjos corporativos entre trabalho e capital. Mas essa perspectiva tem limites.

O padrão civilizado das relações de trabalho resgata a idéia de emprego decente, cujos pilares são garantias de direitos e princípios fundamentais do trabalho, a promoção do emprego de qualidade, a extensão da proteção social e o diálogo social, segundo a Organização Internacional do Trabalho.

Com esse quadro, questiona-se a afetividade do modelo negocial corporativo "caso a caso", que tem sido uma das marcas e a meta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, conforme José Lopes Feijóo declarou em artigo à grande imprensa. Para reflexão dos trabalhadores metalúrgicos e líderes sindicais, indaga-se se não era o momento de mudar o eixo para um encaminhamento estratégico dos problemas complexos da cadeia metalúrgica no Brasil e no mundo globalizado.

As empresas estão de fato negociando, ou manipulando a implantação de decisões já tomadas em outros lugares para manter os interesses que representam? Além disso, há problemas que são da esfera da gestão - o diferencial competitivo, a minimização dos riscos e a segurança do "investimento" e, problemas que são da esfera do trabalho, condições sociais e de trabalho dignas - apenas para considerar o patamar essencial do emprego decente.

-------------------------------------------------------------------------------- É preciso rediscutir o futuro da produção dos automóveis no Brasil e quais os parâmetros para entrada de concorrentes --------------------------------------------------------------------------------

O problema da Volks de hoje será o problema ou a vantagem de amanhã da Daimler Chrysler, que será da Ford, da GM, da Honda, da Toyota e de toda a cadeia produtiva do setor, incluídos os fornecedores de peças e acessórios e outros setores industriais. Qual o controle sobre todo esse processo, se as decisões empresariais são globais, virtuais e financeiras, orientadas fundamentalmente pela competitividade global e pelo interesse do acionista?

Seria razoável rediscutir o que o Brasil deseja no futuro com a produção dos automóveis e em quais parâmetros interessa a entrada de novos concorrentes globais. Isso é válido para qualquer setor que usa o território brasileiro para seus negócios. E os trabalhadores e os sindicatos devem se envolver nos rumos dos setores aos moldes do que se observa nos EUA e Canadá nos negócios de compra e venda do setor siderúrgico, por exemplo.

Na era global não há mais espaço para a autonomia dos interesses nacionais e da classe trabalhadora. Alguém de fato acredita nessa história? A Alemanha, berço da Volkswagen e das formas corporativistas de gestão - entendidas como co-gestão - sustenta de que modo o padrão de vida social digno para os trabalhadores alemães, inclusive com jornadas que em alguns casos não atingem 30 horas semanais? E a França, a Espanha, a Itália, Japão, Coréia e os países nórdicos não colocam os interesses nacionais, trabalhistas e sociais a frente dos outros?

No caso específico da crise da Volks, não se defende aqui qualquer intervenção do Estado ou do Ministério do Trabalho em assuntos da negociação trabalhista entre as partes do setor automotivo. Que o conflito se estabeleça e se arranje sem intervenção também da Justiça do Trabalho. No entanto, não se pode defender o financiamento da irresponsabilidade social ou da incompetência de empresas, equívocos de projetos com fundos públicos, muitos gerados pela própria força de trabalho.

Até agora os beneficiados do modelo de negociação corporativa têm se restringido ao que em gestão chamamos de stakeholders, que não é pouco, mas é um conceito limitado à perspectiva gerencial. É preciso ir além e articular interesses mais abrangentes nesses processos. A crise da Volks transformou-se em uma questão pública e política não foi à toa.

O recuo da Volkswagen na demissão dos trabalhadores e a volta ao trabalho foi determinado por diversos fatores. Indicamos três: a avaliação de que a imagem da empresa poderia ser bastante prejudicada com impactos no negócio; a possibilidade de generalização do movimento grevista e sindical dos metalúrgicos para outras fábricas da cadeia produtiva, o que poderia mudar o modelo de negociação restrito à corporação; e por último, mas não menos importante, a politização da questão.

A proposta de acordo coletivo entre Volkswagen e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC anunciada dia 12 de setembro, em torno de um PDV mais abrangente, mudou o padrão da relação, mas não resolveu o problema estratégico do pólo do trabalho. No entanto, importante registrar que há uma dimensão de aprendizado político e sindical - ou efeito demonstração - nessa negociação.

A crise da Volks abre muitas questões sobre o futuro das relações de trabalho em processos de globalização dos negócios. Um dos desafios é compartilhar uma reflexão sobre a necessidade de mudança nas estratégias sindicais frente às estratégias globais das empresas em defesa do emprego decente e da vida digna. Lembrar também que os interesses do trabalho e das pessoas de uma nação devem estar no mesmo patamar do interesse dos acionistas e da competitividade dos negócios. Essa é a luta do futuro.

Arnaldo Mazzei Nogueira é professor titular da FEA da PUC-SP e professor doutor da FEA-USP. Autor do livro "A liberdade desfigurada: a trajetória do sindicalismo no setor público brasileiro". São Paulo: Editora Expressão Popular, 2005.