Título: Tarefa imprópria
Autor: Torikachvili, Silvia
Fonte: Valor Econômico, 22/09/2006, Caderno Especial, p. F1

Foi durante uma seca na cidade de Russas, a 200 quilômetros de Fortaleza (CE), que a então Fundação BankBoston desenvolveu uma ação que acabou revelando uma comunidade que contava com a mão-de-obra infantil para tocar as olarias. Para socorrer a população flagelada, o banco ofertou cestas básicas, e esta ação assistencialista, em 1999, se transformou no Projeto Russas, que sobrevive até hoje. Começou com uma operação que envolveu a prefeitura, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e os voluntários do banco. A parceria forçou a inclusão da cidade no Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), introduziu a jornada ampliada nas escolas e deu início a programa profissionalizante para jovens.

"A partir da mudança de mentalidade, a cidade começou a gerar trabalho", lembra Sonia Favaretto, superintendente da atual ItaúBank, a fundação recém-formada a partir da fusão dos bancos Boston e Itaú. As alternativas profissionalizantes incluem uma mini-fábrica de alimentos que garantem a merenda escolar, uma padaria-escola e atividades como serigrafia, gráfica e até um núcleo de costura e outro de marcenaria. "Com as jornadas ampliadas, as crianças foram retiradas do trabalho, os jovens foram se encaminhando para o aprendizado de uma profissão e a cidade passou a produzir alguma renda", diz Sonia.

Para desencorajar qualquer possibilidade da volta da mão-de-obra infantil às olarias, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) se encarrega do monitoramento, segundo Sonia, e a própria Delegacia Regional do Trabalho (DRT) faz a fiscalização.

A principal ação que motivou a transformação em Russas foi a mobilização dos voluntários do então BankBoston. Cerca de R$ 7 mil mensais asseguraram o início da retirada das crianças das olarias e o encaminhamento à jornada ampliada nas escolas. Quando o Peti foi introduzido na cidade, em 2001, os recursos continuaram como forma de garantir as alternativas profissionalizantes. "Quando apóia um projeto social, a empresa mostra ao poder público a importância da participação e da cobrança da contrapartida dos resultados", diz Sonia. "Hoje, esse aporte serve como base para os núcleos funcionais que geram trabalho e renda".

A produção nas olarias continua como principal atividade econômica de Russas, mas agora só para os adultos. Os jovens anteriormente beneficiados com a jornada ampliada do Projeto Russas transformaram-se em monitores das novas atividades. Na gráfica, por exemplo, o faturamento anual chega a R$ 50 mil, um dinheiro que garante a manutenção do negócio, além de uma pequena bolsa para cada jovem. Por enquanto, a Prefeitura de Russas é a principal cliente da gráfica e da míni-fábrica de alimentos. "A movimentação da economia na cidade é uma questão de tempo", diz Sonia.

Erradicar o trabalho infantil é uma tarefa à qual se atiram incansavelmente centenas de organizações sociais. Esses esforços apresentaram resultados satisfatórios até os últimos dez anos. Em 1992, segundo dados do IBGE, eram 8,5 milhões de crianças entre 5 e 17 anos trabalhando no país (cerca de 19,5%). Em 2001, o contingente de crianças trabalhando na mesma faixa etária era de 5,4 milhões (cerca de 12,7%). O Brasil levou dez anos para retirar do mercado de trabalho 2,9 milhões de crianças, segundo Isa de Oliveira, secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Mas registrou um retrocesso, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2005.

A quantidade de crianças de 5 a 14 anos que trabalha subiu 10,3% entre 2004 e 2005. Segundo a conclusão do IBGE, o contingente de crianças entre 5 e 17 anos que trabalham passou de 11,8% para 12,2% entre 2004 e 2005. "É inaceitável que após 14 anos de tendência de diminuição haja um rompimento", diz Isa de Oliveira. "Esse retrocesso é ainda mais preocupante quando mostra que houve aumento de 10,3% de trabalhadores entre 5 e 14 anos, uma faixa etária para a qual a lei proíbe qualquer forma de trabalho".

A explicação para esse retrocesso, segundo Isa, pode estar na determinação do governo Lula de iniciar a fusão entre o Peti e o Bolsa Família. O fato de o primeiro programa combater o trabalho infantil e o segundo, a miséria, pode ter gerado uma confusão. Isa acredita que essa nova ordem, que determinou a fusão, poderia explicar o aumento da atividade infantil, que deveria seguir a curva de declínio. Nos últimos 3,5 anos, segundo ela, o Peti fez a inclusão de apenas 200 mil crianças de um universo de 2,5 milhões. "É possível concluir que não se priorizou o combate ao trabalho infantil". Outra possibilidade é que o Bolsa Família, instituído em 2004, não fala em jornada ampliada como também não contempla o trabalho de acompanhamento junto às famílias. "São dois programas diferentes", diz ela. "O Bolsa Família pode até contribuir para o combate à pobreza, mas não para a erradicação do trabalho infantil. Se contribuísse, o resultado da PNAD seria diferente".

Isa acredita ainda que a participação dos empresários no monitoramento de toda a cadeia produtiva e de fornecedores contribuiria de maneira muito mais rápida e eficaz na erradicação do trabalho infantil. Mas muitas empresas só percebem a importância dessa fiscalização quando se voltam para a exportação de seus produtos "Só por força de requisitos e compromissos impostos pelo comércio internacional", diz.

Na Unilever, a constatação de que havia mão-de-obra infantil na lavoura do tomate, em 2003, deixou a empresa em pé de guerra. Durante o episódio da fusão com a Arisco, a luz vermelha acendeu na área agrícola a partir dos relatórios dos técnicos que fornecem assessoria aos produtores. "A Unilever poderia até fechar as linhas de produção de atomatados no Brasil, se o problema não fosse resolvido rapidamente", lembra Elaine Molina, gerente de responsabilidade social da companhia. Diante de questão tão urgente a filial brasileira da Unilever tinha apenas duas opções: descredenciar os produtores que exploravam o trabalho infantil ou encarar o problema de frente.

"Decidimos oferecer alternativas para as crianças e para os pais das crianças", conta Elaine. O programa Infância Protegida foi criado, então, em 2004, nos municípios de Itaberaí e Silvânia, em Goiás, onde os cuidados são severos. "Somos monitorados a cada semestre", conta Elaine. Para que todos se responsabilizem pelo processo, o poder público e os conselhos tutelares também foram acionados e cada um tem sua função no trabalho de proteção da criança. Três anos depois de iniciado, o programa Infância Protegida já está numa segunda etapa. "Agora estamos atentos à desnutrição, à violência doméstica, evasão escolar e introduzimos cursos profissionalizantes".

Essa segunda etapa de monitoramento dentro da Unilever envolve também uma fiscalização rigorosa sobre os três mil fornecedores de itens produtivos e outros 12 mil fornecedores de itens não produtivos. "Cada fornecedor assina um compromisso baseado no código de princípios da companhia", diz Elaine.

O combate ao trabalho infantil é seguramente ainda mais difícil no campo, onde os menores de idade engrossaram as estatísticas em 1,5 milhão. Entre os que trabalham, 76,7% têm entre 5 e 9 anos. A região mais atingida é o Nordeste, que exibe um contingente de 15,9% da população infanto-juvenil no trabalho. No Sul, eles são 14%, concentrados na agricultura familiar. Essa questão vem sendo enfrentada no Acre desde 2001 pela Fundação Roberto Marinho, que estabeleceu uma parceria com o governo do Estado para tocar o Projeto Poronga.

A Fundação Roberto Marinho entrou na floresta com a oferta de escolaridade para adolescentes e jovens sem perspectiva e com dificuldade de freqüentar a escola tradicional. "Reforçamos ali a florestania, um termo criado pelo povo do Acre para definir a cidadania de quem mora na floresta", explica Vilma Guimarães, gerente-geral de educação e implementação da Fundação Roberto Marinho.

O objetivo principal do Projeto Poronga é a oferta de escolaridade de qualidade e fazer com que ela chegue onde for solicitada. A partir disso, as tele-salas foram implantadas na floresta em 2005 e acabaram se transformando em política pública.

As tele-salas têm a função de acelerar o aprendizado ou corrigir a defasagem escolar, mas são principalmente uma forma eficaz de combate ao trabalho infantil. De fato, Vilma diz que já conta os primeiros resultados. "Muitas crianças saíram do trabalho infantil, embora outras continuem trabalhando com os pais para garantir a agricultura familiar", diz ela. "Mas o papel principal das tele-salas é garantir a possibilidade da educação básica para todos".

O sistema de prevenção ao trabalho infantil é ponto de honra na Associação Brasileira de Exportadores de Cítricos (Abecitrus) . Um compromisso assinado em 1995 entre a própria associação, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Unicef e Abrinq, além do Ministério do Trabalho, garante que as empresas associadas à entidade estão livres de mão-de-obra infantil nas lavouras de cítricos. "Qualquer comprador tem o direito de recusar e enviar de volta matérias-primas ou qualquer outro produto industrializado se houver a menor suspeita de trabalho infantil no negócio", explica Adermeval Garcia, o executivo da Abecitrus. "É um compromisso perene que assumimos com os organismos internacionais e com os parceiros de negócio".

A responsabilidade pela fiscalização é do Ministério da Agricultura. Mas as empresas contam também com o controle da Fundecitrus, uma fundação de pesquisa mantida pelo setor e que reúne cerca de 4 mil inspetores em fazendas à procura de problemas sanitários. "Os inspetores são treinados para verificar também se há resquícios de trabalho infantil".