Título: Forças do velho Egito resistem e conspiram contra democracia
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/06/2012, Opinião, p. A14

O movimento de massas que derrubou o ditador egípcio Hosni Mubarak teve a ilusão de que a queda do antigo regime viria com a saída de seu mais poderoso e odiado representante. Dezesseis meses depois, diante de desapontamentos crescentes, o Egito continua governado por militares dispostos a não deixar o poder, que mantêm desde 1952. As históricas eleições parlamentares e os dois turnos das eleições presidenciais estabeleceram rituais democráticos ignorados há décadas. Mas podem desaguar em imensas frustrações, após as sucessivas manobras do Conselho Supremo das Forças Armadas, que rifou Mubarak para continuar comandando o país.

Se havia alguma dúvida de que os militares, que têm posição social e econômica relevante, iriam ceder aos desejos das ruas, ela se dissipou com as provocações em série feitas por eles nos últimos meses e a mais recente manobra da elite do antigo regime para reduzir a uma caricatura a tentativa democrática. Nesse plano, arquitetado pela Suprema Corte do país, inteiramente composta por membros indicados pelo ex-ditador, em conluio com os militares, o Parlamento foi dissolvido ainda durante a eleição presidencial. Ao mesmo tempo, a junta militar, que já havia restabelecido a lei marcial desde 13 de junho, decretou que não estará submetida aos demais poderes constitucionais. O Conselho Supremo avocou para si o direito de fixar seu próprio orçamento e o de vetar artigos da Constituição que, ironicamente, "violem os princípios da revolução" que ele próprio combateu.

O script desse golpe de Estado pode ter o seu final com a sagração de Ahmed Shafiq, o último primeiro-ministro de Mubarak, como o vencedor das eleições do último domingo. Shafiq, que se entendeu bem com os militares, seria o homem ideal para representar a fachada democrática de um regime que, em essência, permaneceu o mesmo até agora. A insistência de Shafiq em proclamar a vitória, com a mesma certeza com que o faz o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohamed Mursi, é suspeita e fala por si só.

"Eleger" Shafiq não é ainda a última cartada dos adeptos do antigo regime. A campanha do candidato dos acólitos de Mubarak foi virulentamente anti-Irmandade, e não há dúvida de que os militares não se sentiriam mal em banir novamente o partido muçulmano da vida política. A dissolução do Parlamento teve esse objetivo. O Partido da Liberdade e Justiça, a face eleitoral da Irmandade, ganhou 235 cadeiras e, ao lado dos radicais muçulmanos salafistas, com 125, formaram um bloco islâmico com 72% dos assentos. Os outros partidos obtiveram 28%.

Agora, ainda que Mursi ganhe as eleições, sobre ele pesará a decisão da Justiça egípcia, que já mostrou a que veio, sobre vários processos que propõem o banimento da Irmandade. O julgamento foi adiado para 4 de setembro, e pode simplesmente anular a possível vitória de Mursi e instalar em seu lugar Shafiq. Esse desfecho não tem nada de irreal. Em abril, a Justiça eleitoral considerou inelegível um dos principais líderes da Irmandade, Khairat el-Shater, alegando seu passado criminal, pelas leis de Mubarak, que governou 30 anos com a lei marcial a seu lado.

A polarização entre militares e o velho regime, de um lado, e radicais muçulmanos, de outro, alijou a maior parte das forças políticas liberais, centristas ou sem partido, que atuaram com peso nas grandes manifestações que derrubaram Mubarak. O avanço da Irmandade no Parlamento descontentou vastos setores, que simplesmente agora se recusam a optar por alternativas que consideram igualmente ruins. Não é a primeira vez na história que momentos de ruptura política colocam à sua frente os mais organizados e antigos partidos políticos, em detrimento das legendas moderadas do espectro político.

A frustração com os rumos da política do país animou ao mesmo tempo os militares a tomar iniciativas mais ousadas. As manifestações da praça Tahrir já não têm a mesma força de antes. Os choques com a minoria católica egípcia, que produziram dezenas de mortos, assustaram quem teme o movimento islâmico. A cartada dos militares é pelo endurecimento do regime. Mursi, se ganhar, não terá Parlamento, e a comissão constitucional pode se acabar sendo redigida em um anexo das repartições militares. A revolta contra o continuísmo pode criar um clima de violência política que abrirá um novo período de incertezas, com repressão, mortes e caos no Egito.