Título: Desafio é combater o crime e preservar privacidade
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 18/06/2012, Opinião, p. A18

A decisão a ser tomada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem tudo para se tornar um divisor de águas no que se refere às escutas telefônicas legais no país. Não há dúvida na sociedade sobre a legitimidade do "grampo" para investigar as ações de quadrilhas organizadas a fim de pilhar o Estado, o crime organizado e o tráfico. Está consagrado na legislação.

Não se trata aqui, portanto, nem de falar sobre grandes traficantes internacionais. Até o "inocente" jogo do bicho serve de porta de entrada para outras atividades criminosas. Portanto, também cabe na definição de quadrilhas que devem ser mantidas sob vigilância policial, inclusive eletrônica.

O que se discute, e agora está na pauta do TRF da 1ª Região, é o abuso - repita-se, abuso - ao recurso do grampo como forma de investigação. Isso torna o trabalho mais fácil, é certo, mas também sujeito a interferências pessoais, às vezes difíceis de detectar.

O que dizer de um inquérito com mais de 150 mil horas de escuta de telefones, como se afirma ter a operação da Polícia Federal que desbaratou a suposta quadrilha de Carlos Cachoeira? Suposta, porque até a condenação da Justiça, se ela ocorrer, o que pesa sobre Cachoeira são suspeitas e fortes evidências. Suspeitas e evidências que talvez não precisassem de 150 mil horas de gravação para a exposição pública.

O abuso nas escutas é evidente pela própria quantidade de horas gravadas. A Polícia Federal talvez tivesse mais êxito se, junto com os recursos eletrônicos hoje disponíveis, se dispusesse a gastar a sola do sapato e a cruzar dados contábeis nos crimes do colarinho branco.

Já há algum tempo o uso da escuta telefônica pela Polícia Federal parece exagerado. Pior ainda: a transcrição das escutas gravadas nem sempre corresponde ao diálogo sob monitoramento. E na maioria das vezes é com base nessas transcrições que o juiz decide em primeira instância sobre a acusação ao suspeito.

Nesse caso, é preciso que os mecanismos institucionais funcionem com precisão. Do contrário, corre-se o risco de ver todo um trabalho jogado por terra, como aconteceu com o caso do banqueiro Daniel Dantas - cujas provas colhidas foram excluídas de um processo justamente por excessos policiais.

O julgamento do TRF da 1ª Região está um a zero em favor de Cachoeira e a decisão foi adiada por um pedido de vistas.

Segundo a defesa de Cachoeira a ser analisada pelo TRF da 1ª Região, os "mosquitos" - como eram chamados os grampos nos órgãos de repressão militar - não poderiam ter sido usados, como foram, motivados por uma denúncia anônima. A autorização de "um grampo" requer motivos mais consistentes.

A defesa advoga também a falta de motivos para a autorização do "grampo" e para prorrogar a interceptação acima do período permitido em lei.

Cachoeira é um nome notório no mundo da contravenção e já há algum tempo demonstrava que estendia seus tentáculos sobre o Estado. Mas por ter o colarinho branco, isso não quer dizer que seja jogado na vala comum dos "colarinhos sujos". O certo é que os dois recebam o mesmo tratamento por parte do Estado.

Hoje escuta-se Cachoeira talvez por motivos corretos, mas por meios tortos; amanhã, pode ser qualquer um que se torne um estorvo ao Estado.

Ninguém duvida das mãos limpas do ministro da Justiça ou do diretor-geral da PF, mas o que dizer do poder de que se sentirá autorizado a exercer o guarda da esquina, nos termos imortais de Pedro Aleixo na sessão que decretou o Ato Institucional 5?

O paroxismo do grampo telefônico se infiltrou no Estado democrático à época das privatizações, no governo de Fernando Henrique Cardoso; passou pela fracassada candidatura presidencial da atual governadora do Maranhão, Roseane Sarney, hoje no PMDB, à época no antigo PFL, e tornou-se incontrolável nos últimos anos, seja por responsabilidade do Estado ou dos "Dadás", arapongas que perderam função na redemocratização.

Chegou-se ao cúmulo de "grampear" escritórios de advocacia, por motivos duvidosos, quando a inviolabilidade do trabalho desses profissionais somente deve ser objeto da intervenção do Estado mediante argumentos sólidos de sua conivência com o crime. O que o TRF da 1ª Região deve discutir, na próxima semana, não é o mérito dos crimes atribuídos a Cachoeira, mas o direito de a vida privada não ser à toa bisbilhotada pelo Estado.