Título: O banco que quebrou a Espanha
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Fonte: Valor Econômico, 25/06/2012, Finanças, p. C6

Um grupo muito sólido, com mais de 10 milhões de clientes."

Foi assim que um alto executivo do Bankia descreveu o grande banco espanhol na última sexta-feira de abril.

Em meio a rumores de graves problemas financeiros, ele garantiu a dois céticos jornalistas que a tarefa de integrar sete bancos regionais de poupança ao grupo estava, em grande medida, concluída, e que os planos de reduzir os custos, diminuir o endividamento e minimizar a dependência em relação aos instáveis mercados de financiamento de atacado estavam bem avançados.

"Criamos uma marca - Bankia", disse o executivo na sede do grupo na zona norte de Madri, embora a confiança que ele tentava transmitir estivesse sendo solapada pelo notório desconforto que ele exibia e por sua apressada saída da sala ao ser convocado para uma reunião.

Pouco mais que uma semana depois, o governo de centro-direita do primeiro-ministro Mariano Rajoy interveio com uma operação destinada a salvar o banco. A farsa tinha acabado para aquele malfadado mastodonte que começara a operar com mais de 4 mil agências e quase 25 mil funcionários.

Rodrigo Rato, o ex-ministro da Fazenda da Espanha e ex-diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), que se tornara o presidente do conselho de administração e principal executivo do Bankia, foi obrigado a renunciar ao cargo. O governo anunciou uma nacionalização parcial, a um custo estimado em nada menos que € 10 bilhões.

Foi aí que veio o golpe mais chocante: em 25 de maio, José Ignacio Goirigolzarri, um experiente dirigente de banco convocado de sua aposentadoria para substituir Rato e resgatar o Bankia, disse que a instituição precisava do dobro daquela quantia para sanear os empréstimos não quitados. Ele solicitou € 19 bilhões em capital emergencial novo, além da ajuda governamental anterior de € 4,5 bilhões.

O Bankia reformulou e reapresentou seus resultados de 2011, que passaram a demonstrar um prejuízo líquido de € 3 bilhões, em vez do lucro líquido de € 309 milhões originalmente notificado.

Criados em janeiro do ano passado e lançados na bolsa de Madri seis meses mais tarde, o Bankia e sua mantenedora Banco Financiero de Ahorros (BFA) foram decantados por Rato como o maior banco da Espanha em termos de nível de atividade doméstica, com € 341 bilhões em empréstimos e depósitos e uma participação de mercado de 10%. Mas, no mês passado, menos de 18 meses depois, o Bankia tinha se tornado a maior catástrofe bancária da história da Espanha.

Clientes de varejo de toda a Espanha, cerca de 350 mil deles, foram convencidos a comprar [as ações do Bankia]

O colapso do Bankia, no entanto, não é simplesmente um arranhão na reputação do setor bancário espanhol. Goirigolzarri fez seu apelo por capital num momento em que Madri encontrava dificuldades cada vez maiores para captar recursos por meio de leilões de bônus soberanos. Isso desencadeou a decisão de Rajoy, duas semanas depois, de engolir seu orgulho e apelar para uma operação de socorro financeiro de até € 100 bilhões da União Europeia para recapitalizar os bancos espanhóis.

E o fracasso desse "minissocorro" financeiro espanhol para tranquilizar os mercados pode ainda gerar a necessidade de uma operação de salvamento financeiro integral da Espanha, semelhante aos salvamentos anteriores de Grécia, Irlanda e Portugal - e, assim, colocar em perigo a zona do euro, formado por um grupo de 17 países.

"O que detonou a última fase da crise foi a situação de uma grande instituição financeira e suas enormes necessidades de capitalização", disse no início do mês Angel Ron, presidente do conselho de administração do Banco Popular, um banco comercial espanhol com ações negociadas em bolsa, referindo-se ao Bankia. "Essa foi a gota d"água", concordou um analista.

As origens da instituição que tanto prejudicou a Espanha estão nas regiões do país que conquistaram poderes consideráveis nos últimos anos. Os componentes do Bankia - a Caja Madrid, a Bancaja de Valência e bancos de poupança de menor porte das ilhas Canárias, da Catalunha, de Rioja e das cidades de Ávila e Segóvia, na região central da Espanha - eram típicos das "cajas", que respondiam por metade do sistema bancário espanhol, em termos de ativos, antes do início da crise. Elas começaram como empresas regionais e eram, na maioria dos casos, estreitamente ligadas a políticos das áreas em que operavam. A Caja Madrid e a Bancaja, por exemplo, eram influenciadas e comandadas pelo Partido Popular, atualmente no governo do país.

Acima de tudo, as "cajas" tinham grande exposição ao mercado imobiliário, tendo financiado a era de alta rentabilidade da construção residencial na década encerrada em 2007 e emprestado irrestritamente a incorporadoras, construtoras e compradores de imóveis residenciais.

Desde 2009, outras cajas e grupos de cajas quebraram também. Elas foram desapropriadas pelo governo e vendidas ou simplesmente nacionalizadas - em Castela La Mancha, Andaluzia, Valência, Galícia e Catalunha. A queda do Bankia foi pior, no entanto, porque ele não apenas simbolizava todas as fragilidades políticas e de administração do sistema financeiro espanhol, como também seu porte era tão grande a ponto de torná-lo "sistemicamente importante". Sua ruína ameaçaria toda a rede bancária, e ele era, portanto, "grande demais para falir".

Entrevistas com executivos do Bankia, com outros dirigentes de bancos e com analistas mostram que foram cometidos erros por todas as partes: pelos políticos nacionais e regionais, tanto do Partido Popular quanto do Partido Socialista, pelos órgãos reguladores da bolsa e do setor bancário, pelos diretores anteriores e atuais do banco e das cajas que o compõem, pelos dirigentes de bancos de investimentos, pelos analistas de bancos e por uma mídia insuficientemente investigativa. Embora seja fácil fazer avaliações desse tipo com a vantagem da visão retrospectiva, também é verdade que os dirigentes dos bancos comerciais espanhóis vinham de há muito criticando, entre si, a tolice representada pelos empréstimos imobiliários das cajas, principalmente nos arredores de Valência, onde a Bancaja tinha sede.

Madri estava apenas ligeiramente melhor. Durante o surto de crescimento do mercado de imóveis residenciais da Espanha, o crédito imobiliário concedido pela Caja Madrid, o maior dos bancos de poupança formadores do Bankia, começou a crescer tão rapidamente que, em 2007, alguns executivos tentaram desacelerar o ritmo. Depois de sua carteira de financiamento imobiliário ter crescido 25% em 2006, Carlos Stilianopoulos, o então diretor de mercados de capitais da Caja Madri e posteriormente diretor executivo do Bankia, disse: "Não queremos crescer tão rápido. Somos um banco de poupança, portanto não devemos satisfação aos acionistas. Preferimos ter uma instituição sólida".

Ao mesmo tempo, advertências do exterior sobre o superaquecimento do mercado imobiliário espanhol eram desqualificadas. "Talvez em outros países esse ritmo de crescimento tivesse sido visto como uma bolha", disse ele à revista "Euromoney". "Mas na Espanha, não foi."

A Caja Madrid continuou a crescer e passou a comercializar instrumentos financeiros exóticos com investidores estrangeiros, como pacotes de empréstimos securitizados.

"Cerca de 5% do setor bancário da Espanha - correspondente às cajas - não tinha qualificações de governança corporativa ou de administração para suportar uma crise", diz um dos muitos dirigentes de bancos de investimentos envolvidos na oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) do Bankia.

Depois de 2008 - quando a bolha imobiliária espanhola começou a murchar, o Lehman Brothers entrou em colapso e começou a crise da dívida soberana da zona do euro. O Banco da Espanha e o governo socialista de José Luis Rodríguez Zapatero lançaram um programa de "fusões em condições favorecidas" entre as cajas para melhorar a eficiência.

De início, no entanto, as reformas estiveram longe de serem brutais. Os diretores responsáveis pelas cajas em processo falimentar foram muitas vezes mantidos ou aposentados com pacotes de remuneração de vários milhões de euros.

Com o aprofundamento da crise, os reguladores espanhóis, europeus e internacionais elevaram as exigências de capitalização. Para o Bankia, a decisão fatídica foi a entrada em vigor de uma norma espanhola que obrigava os bancos a ter um grau de capitalização de nível 1 de 10% de seus ativos - a não ser que tivessem suas ações registradas em bolsa, caso pelo qual o índice autorizado era de 8%. A ideia era proteger o dinheiro do contribuinte, mas a norma empurrou o Bankia para um IPO que, segundo a maioria, jamais deveria ter acontecido da maneira como foi feito.

"Considero muito difícil acreditar que os que criaram a estrutura do Bankia, e que estavam trabalhando na sua abertura de capital, não sabiam dos problemas do banco", disse um assessor envolvido na nacionalização do Bankia.

Antes de lançar ações em bolsa, o Bankia contratou a Lazard, onde Rato tinha trabalhado após sair do FMI, para coordenar e assessorar a venda de ações. Posteriormente recorreu a um grupo de bancos de investimento internacionais - capitaneado por Bank of America Merrill Lynch, Deutsche Bank, J.P. Morgan e UBS - para promover a operação junto a investidores internacionais. A Lazard espanhola preferiu não comentar.

Apesar de seu colossal apoio financeiro, os dirigentes de bancos de investimento que trabalharam na operação disseram que o interesse por parte de instituições estrangeiras foi insignificante. Eles conseguiram se lembrar de apenas um administrador de um fundo de investimento em Londres que manifestou interesse em comprar algumas ações.

"Se eu fosse um diretor de banco de investimento, nunca teria feito o IPO do Bankia - nunca teria conseguido recomendá-lo a um cliente", disse um administrador de investimentos lotado no Reino Unido que preferiu não comprar os papéis.

O processo de vender o Bankia no exterior foi descrito por alguns dos envolvidos como "caótico" e "lesivo", com vários bancos enfrentando dificuldades para se fazerem ouvir entre si e sendo obrigados a filtrar retornos negativos vindos de potenciais investidores, ao encaminhá-los à Lazard e à outra assessoria principal, a STJ Advisors.

Várias assessorias notificaram o Bankia de que a instituição financeira teria de captar mais dinheiro, especialmente em vista do grande diferencial entre empréstimos e depósitos, de sua exposição de € 32,9 bilhões ao mercado imobiliário e de sua necessidade de quitar o empréstimo, a juros elevados, de € 4,5 bilhões que tomara junto ao Fundo pela Reestruturação Bancária Ordenada (Frob).

Um fator determinante que impediu o Bankia de concordar em vender uma quantidade maior de suas ações, e que lhe deu um maior colchão de liquidez para enfrentar prejuízos, foi o fato de ter sido impossível fazer isso sem diluir o controle dos bancos de poupança que formavam o Bankia para menos de 50%, nível inaceitável para os políticos regionais, interessados em manter sua influência.

O Bankia comercializou suas ações com contas não auditadas - "devido à recente criação do Grupo Bankia", sustentava o prospecto - e acabou sendo a recusa da Deloitte de assinar as contas de 2011 que desencadeou a intervenção do governo, no mês passado.

"Os riscos de investir num banco espanhol eram conhecidos, e o prospecto deixava isso claro", diz um dos assessores. "Mas o que aconteceu com relação ao rombo de € 19 bilhões? Nenhum de nós poderia ter previsto isso."

Faltavam também ao Bankia altos executivos experientes, uma falha que fez alguns dos bancos de investimento que tentavam comercializar seu IPO ameaçarem se retirar do processo pouco antes da turnê de divulgação internacional. Em vista disso, Rato escolheu Francisco Verdú, o pouco conhecido vice-presidente do conselho de administração do Banca March, como seu principal executivo.

"Houve muita improvisação", disse um diretor de banco. "Foi um IPO muito estranho." E quando os estrangeiros se esquivaram de comprar as ações, altos membros do governo Zapatero chamaram os diretores dos bancos e corporações espanhóis e os dotaram de uma enormidade de condições para adquirir 40% dos € 3 bilhões em ações "em nome do interesse nacional".

Clientes de varejo de toda a Espanha - cerca de 350 mil deles - foram convencidos a comprar o restante.

"O grande erro foi quando eles voltaram do "road show" internacional e viram que não havia interesse. Deveriam ter suspendido a operação", diz o especialista em setor bancário Iñigo Vega.

O Bankia passou por períodos excepcionalmente difíceis desde a abertura de capital. Em setembro, Santiago López Díaz, analista da Exane BNP Paribas e um crítico das cajas, inaugurou a cobertura do banco ao orientar os investidores a vender suas ações, posição rara entre analistas ligados a instituições que trabalham para o Bankia. O BNP Paribas tinha sido o coordenador da operação.

Executivos do Bankia descrevem meses de dificuldades, uma vez que os reguladores europeus e depois o governo do Partido Popular, eleito em dezembro do ano passado, impuseram uma sucessão de exigências cada vez mais altas de capitalização aos bancos espanhóis em dificuldades financeiras, a título de proteção contra seus empréstimos imobiliários não honrados. "Quando se ultrapassava uma barreira, aparecia outra", diz um executivo do Bankia. "Eles nos deram muita dor de cabeça."

Em abril ficou claro que o fim estava próximo quando o FMI, sem citar nominalmente o Bankia, defendeu uma capitalização ainda maior para os bancos espanhóis, a fim de preservar a estabilidade financeira. "É fundamental que esses bancos, principalmente o maior de todos, tomem medidas rápidas e decisivas para fortalecer suas demonstrações de resultados e melhorar as práticas de gerenciamento e governança", disse o FMI.

Em duas semanas, Rato foi obrigado a sair por seus ex-colegas do governo do Partido Popular. Em cinco semanas, Miguel Ángel Fernández Ordóñez, o presidente do Banco da Espanha, foi convencido a deixar o cargo com um mês de antecedência em meio a críticas a seu papel regulador.

Vega, o especialista no setor bancário, calcula que as mais recentes exigências de capitalização de Goirigolzarri permitem concluir que as necessidades totais de provisões para cobrir empréstimos não quitados do Bankia/BFA - incluindo o montante já reservado pelo banco - alcançavam mais de € 41 bilhões até dezembro do ano passado, quase o dobro da cifra fornecida por Rato. "Isso equivale a 18% da carteira de crédito original, o que é um número assombrosamente alto." Ele continua: "O que deu errado? Os métodos de subscrição [avaliação de empréstimos] da Bancaja e da Caja Madrid eram, basicamente, lixo... foi uma grande bolha e os bancos emprestaram como loucos".

Entre as vítimas estavam não apenas o prestígio internacional da Espanha e a reputação de seu sistema bancário, como também as centenas de milhares de clientes do banco que compraram ações do Bankia movidos pela convicção de que se tratava de um investimento seguro. O governo está resistindo em fazer uma sindicância pública, mas o procurador-geral do Ministério Público instaurou uma investigação para apurar cinco possíveis crimes no Bankia, dentre os quais fraude, documentação falsa e apropriação indébita.

Os funcionários de agência do Bankia foram estimulados a comprar as ações do banco por seu sindicato como demonstração de apoio. "Eu compro Bankia. E você?", era o slogan da campanha do sindicato, realizada também pelo Facebook. Os funcionários que compraram não atentaram, aparentemente, para a possibilidade de que todos os acionistas teriam seus investimentos diluídos para um nível quase igual a zero por meio da injeção dos recursos de socorro financeiro. E essa foi mais uma passagem trágica na triste história do banco que quebrou a Espanha.