Título: O Orkut e o alcance das leis brasileiras
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/09/2006, Legislação & Tributos, p. E2

As aparências enganam. A ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a empresa de tecnologia Google, ao contrário do que as manchetes transmitem, não é uma oposição brasileira ao Orkut, nem um problema de comunicação entre órgãos judiciários do Brasil e dos Estados Unidos. O pavio, aceso pelos desafios lançados pelas duas partes nos últimos meses, conduz a uma substância bem mais inflamável: a soberania nacional.

O Orkut é um produto secundário do Google, líder mundial em mecanismos de busca e verbas de publicidade. Mas um produto muito bem-sucedido, especialmente no Brasil, onde as páginas pessoais e as comunidades sobre os mais variados temas já atraíram mais de 17 milhões de pessoas. Fotos, links para outras páginas e mensagens de texto compõem o universo movimentado e plural do Orkut.

Seu lado negativo, alardeado pelo Ministério Público, são os efeitos colaterais do anonimato, trazidos pela facilidade de publicação de conteúdos e pela ausência de controle sobre eles. Aos delitos mais lembrados - exploração sexual de menores e crimes de ódio, com a apologia de soluções extremas e violentas - somam-se inúmeros outros, do tráfico de drogas às ofensas contra a honra. As informações reclamadas do Google para combater esses crimes são a ponte, a ligação entre a mensagem e seu emissor, ou seja, o vínculo entre mensagens públicas e seus criadores. Sem prejuízo, portanto, quer à liberdade de expressão quer à intimidade.

A reação do Ministério Público Federal, após notificar a Google Brasil e não conseguir informações suficientes para coibir os crimes praticados por meio do Orkut, foi constranger a subsidiária da empresa com processos por desobediência. Os representantes da Google Brasil disseram-se dispostos a colaborar com a Justiça brasileira, mas, ainda assim, não forneceram os dados necessários para identificar os computadores e as localidades de onde partiram as agressões, mensagens preconceituosas, ofertas de entorpecentes, dentre outros.

Argumenta-se que os servidores estão nos Estados Unidos, e que a empresa nacional lida apenas com "marketing e vendas" - subentendendo-se que o Orkut não teria controle sobre as informações disponibilizadas em seu mecanismo nem sobre seus usuários. A defesa do Google está também calcada na proteção à liberdade de expressão e à privacidade dos usuários do Orkut, muito mais forte nos Estados Unidos do que no Brasil.

-------------------------------------------------------------------------------- A atuação do Google no Brasil submete-se aos ditames constitucionais, sobretudo os referentes à ordem econômica --------------------------------------------------------------------------------

Esses argumentos, contudo, caíram por terra no Poder Judiciário brasileiro: o Google foi condenado a entregar com presteza as informações requeridas, sob pena de custosa multa diária. A decisão liminar, que será provavelmente mantida, toma base nas regras de aplicação das leis nacionais e sobre o alcance de nossa jurisdição. E desconsidera o sigilo no caso, pois há apenas a identificação de máquinas e pessoas, sem invasão de mensagens privadas.

Assim, confirma-se que a atuação do Google no Brasil, seja por uma empresa constituída no país, seja pelas operações da matriz sobre páginas na internet, submete-se aos ditames constitucionais brasileiros, sobretudo os referentes à ordem econômica, que impõem o respeito à soberania nacional. Cabe ao Google reconhecer, no Brasil, as leis nacionais, e não apenas as de seu país-sede. Isso implica ampla cooperação em persecuções penais, com prestação de informações de forma célere e precisa, mas também o cumprimento adequado de todas as decisões judiciais e atenção às normas e costumes brasileiros, relacionados ou não à internet.

Como todas as grandes transformações, a revolução da era digital reformula estruturas econômicas e desloca fontes de poder. Nesse turbilhão surge o confronto entre o Google e o Ministério Público Federal. Mas não basta apenas reconhecer que as mudanças tecnológicas vêm reconstruindo a prática da liberdade de expressão, multiplicada em suas formas de exercício e intensificada por alguns meios. É preciso notar que, ao mesmo tempo, surgem novos conflitos sociais, e problemas antigos lançam mão das ferramentas mais atuais, como bem demonstram as charges racistas, ofertas de cocaína ou filmes de estupro de crianças online - muitos deles no Orkut, colocados por brasileiros e visando o público nacional.

Os direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, devem ser vistos menos como legislação estática e mais como uma resposta às necessidades sociais em constante evolução. Sua proteção demanda agilidade e convergência de esforços públicos e privados. Por isso mesmo a diluição de fronteiras causada pela Internet não pode acarretar impunidade plena, com respeito móvel às leis escolhidas por cada empresa, conforme sua conveniência ou a instalação física de seus servidores.

A garantia da liberdade de expressão só pode ser plena e eficaz se as pessoas continuarem a responder por seus atos. Preferencialmente no local e na comunidade onde eles produzem efeitos.

Daniel Arbix é advogado especializado em tecnologia da informação do escritório Felsberg e Associados

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