Título: A CVM agora se antecipa aos problemas
Autor: Valenti , Graziella
Fonte: Valor Econômico, 04/07/2012, Finanças, p. C12

Maria Helena Santana encerra no dia 14 sua gestão à frente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Até o momento, o nome do sucessor ainda é desconhecido e sequer está claro quem são de fato os candidatos. No total, foram seis anos na autarquia. Antes de assumir a presidência, Maria Helena passou um ano como diretora, após sair da então Bovespa.

Quando assumiu a vaga deixada por Marcelo Trindade, o Brasil vivia o auge das aberturas de capital. O ano de 2007 foi recorde em atividade nas ofertas de ações, com mais de R$ 70 bilhões movimentados. O momento mais difícil, segundo ela, foi a crise internacional de 2008, com os derivativos de risco que praticamente quebraram Sadia e Aracruz. Houve pânico no mercado e nem bancos tradicionais escaparam dos rumores. "Não tínhamos claro o tipo de problema daqueles derivativos tóxicos, em quantas empresas estavam e qual era a magnitude do que ainda estava por vir. Foi muito tenso."

Mais de 130 novas companhias depois, desde a revitalização do mercado, Maria Helena está preocupada agora em melhorar o acesso das pequenas e médias companhias às ferramentas de mercado, ações ou dívidas. "A gente já viu o benefício que trouxe desamarrar o mercado de IPOs [ofertas públicas iniciais] para as grandes, a partir de 2004. E só podemos imaginar o que seria multiplicar esse benefício para um universo muito maior."

Entretanto, ao fazer o balanço de sua gestão, prefere não falar sobre o que a CVM fará, já que está deixando a autarquia e não quer pautar seu sucessor e os diretores que ficam na casa.

A agenda de médio prazo do regulador, contudo, também tem em discussão o aumento da eficiência da indústria de fundos e a melhoria do acesso a informação, em especial para o varejo.

"Cada vez mais a taxa de administração é importante para a rentabilidade que o investidor realmente leva para casa"

A partir de agora o mercado vai experimentar a regulação desenvolvida nos últimos anos, principalmente durante sua gestão, que mirou o preparo do mercado brasileiro para as companhias sem controlador definido.

Não é à toa que Maria Helena vem aproveitando as últimas apresentações públicas à frente do órgão para alertar sobre o risco das empresas "sem dono", o excesso de independência nos conselho de administração e os incentivos de remuneração que podem ser perversos. Roteiro já visto nos países desenvolvidos.

Apesar dos alertas, Maria Helena acredita que as bases para essa convivência com as empresas de capital pulverizado estão lançadas. No Novo Mercado, já são 27 companhias com mais de 60% das ações dispersas, sendo que em 14 delas mais de 90% do capital está em circulação.

No total, foram 77 novas instruções entre 2007 e 2012, que privilegiaram o aumento da informação pelas empresas, incluída aí a adoção do padrão contábil internacional, o IFRS.

Nesses cinco anos, a autarquia julgou um total de 274 processos, que resultaram na aplicação de multas num total de R$ 1,4 bilhão. Além disso, foram feitos 313 termos de compromisso, envolvendo 614 acusados e que somaram quase R$ 304 milhões.

Para dar conta do crescimento do mercado brasileiro - que em 2007 movimentava diariamente R$ 4,9 bilhões, e no ano passado, R$ 6,5 bilhões, em média - a CVM também teve de crescer. Há cinco anos, eram 452 funcionários. Esse número passou para 608, considerando os procuradores. O orçamento subiu de R$ 140 milhões para os R$ 296 milhões aprovados para este ano.

Maria Helena guarda a sete chaves o nome que levou como sugestão ao ministro da Fazenda, Guido Mantega. Tudo o que se sabe é que a assunção do posto pelo atual diretor Otávio Yazbek também é vista com bons olhos. Também não revela os planos pessoais. "Tenho quatro meses para pensar nisso."

Confira abaixo trechos da entrevista exclusiva que Maria Helena concedeu ao Valor.

Valor: Que mercado o Brasil tinha quando assumiu a presidência da CVM e que mercado acreditar estar deixando?

Maria Helena Santana: Tivemos um aumento de qualidade importante. Um fortalecimento institucional da CVM, que passou a atuar de forma a tentar se antecipar aos problemas. Acho que o mercado continuou evoluindo. Menos do que poderia, certamente, se tivéssemos um mercado mais receptivo e menos volátil e a economia em condições mais favoráveis para projetos de longo prazo. Do lado de emissores e investidores, acho que temos um mercado muito mais maduro. Ficou evidente que a economia pode ajudar ou atrapalhar, que a volatilidade pode trazer à tona a fragilidade dos negócios que não estavam tão visíveis nos momentos mais benignos. E as experiências tristes são importantes para isso.

Valor: Mudou muito a forma de a CVM atuar nesse período?

Maria Helena: Houve uma mudança de tônica muito perceptível dentro da CVM, após a implantação da supervisão baseada em risco [Resolução 3.427, de 2006, do CMN]. Há uma ênfase maior em supervisão preventiva. Os inspetores puderam se aprofundar em assuntos específicos, conforme as prioridades apontadas por uma matriz de riscos. As inspeções passaram a ser feitas por roteiros, abordando todos os aspectos de uma atividade. Fazemos uma foto de uma determinada questão e decidimos o que é preciso ser feito. Antes, a CVM fazia principalmente inspeção diante de problemas concretizados ou sob demanda, após reclamações. Fazer isso por conta de um plano traçado pela própria CVM, que mapeia riscos e procura enfrentar antecipadamente os problemas, é uma mudança grande. É difícil para o mercado do lado de fora perceber o quanto isso é responsável por ações de regulação, orientação e "enforcement". Temos um comitê de identificação de riscos, criado após a crise, com objetivo de colocar diretores e superintendentes em volta da mesa periodicamente para falar sobre o que estão vendo e o que os está preocupando.

Valor: Alguma ação concreta que possa contar?

Maria Helena: Boa parte do conteúdo da regra de FIDCs [fundos de direitos creditórios] que vamos propor em breve.

Valor: Quais foram as evoluções regulatórias nesse período?

Maria Helena: Acho que conseguimos, adequando a regulamentação sobre divulgação de informações, preparar o mercado para um momento inédito na nossa história, que é o de permitir que as empresas se financiem via mercado. Inclusive a ponto de colocar a maioria das ações na bolsa e ter o controle disperso ou detido por investidores diversos e que não têm nada a ver com o projeto original. Sem informação, esse é um processo de grande risco, que pode levar a um mercado puramente especulativo. Acredito que com o tipo de "disclosure" [transparência] que hoje é exigido, com o IFRS, que melhora a capacidade de refletir a situação econômica da empresa, temos um mercado em condição de funcionar, de impor disciplina. Um mercado em que é possível substituir uma administração, quando necessário. Essa é uma mudança relevante. Esse cenário traz uma série de preocupações, com os problemas que já vimos nos mercados desenvolvidos em relação às empresas que não tem dono. Os problemas de ter um controlador eventualmente com interesses não alinhados aos dos minoritários, conhecemos bem. Essa é nossa história. Foi para isso que nossa lei teve uma série de dispositivos e a regulação da CVM focou muito nisso. Os problemas de não ter o controlador são menos evidentes ainda no nosso ambiente, porque não são frequentes. Mas com informação nos preparamos para lidar com eles melhor.

Valor: Então estamos preparados para os dilemas das companhias pulverizadas, sem controlador definido?

Maria Helena: É difícil dizer se estamos preparados. Mas temos características que ajudam muito. Exercer o controle das administrações via voto em assembleias é uma possibilidade hoje mais concreta. Por um lado, porque melhoramos a informação para esses eventos. Por outro, porque atacamos os custos envolvidos na participação, quando regulamentamos os pedidos públicos de procuração previstos na lei. Além disso, promovemos mudanças na norma de ofertas públicas, procurando também nos preparar para um "takeover", uma tomada de controle dessas empresas via mercado. Então, fomos na direção de estarmos mais preparados, sabendo, porém, que isso é um alvo móvel.

Valor: O que preocupa nesse novo ambiente?

Maria Helena: A gente tem um mercado secundário de ações em que predominam investidores de curtíssimo prazo, como os de alta frequência, os que negociam com base em algoritmos e com base em números de computador, cujas decisões de investimento são de preços relativos. Outra parte do mercado muito relevante é composta por investidores passivos, cujo mandato é acompanhar índices. Esses profissionais também não se importam com fundamentos e práticas de governança. Então, uma parcela minoritária do mercado tem como mandato olhar os fundamentos. E na atual estrutura, com muitos intermediários, existem questões que chamam atenção para o futuro. O tomador de decisão na gestão propriamente dita da carteira muitas vezes está muito longe do gestor do fundo de pensão, por exemplo, do dono do capital ou de quem tem o dever em relação aos seus cotistas ou poupadores. Tudo isso pode levar o responsável a ficar alienado dos objetivos de longo prazo.

Valor: Houve um avanço grande na parte das companhias. O processo de regulação está migrando agora para a área de fundos?

Maria Helena: O que posso falar é de uma agenda de médio e longo prazo já andando dentro da CVM e que será ou não tocada conforme a decisão das pessoas. Está na mesa uma discussão sobre se há como contribuirmos para que nossa indústria de fundos seja mais eficiente. Alguns aspectos disso são como permitir ganhos de escala e como aproveitar para tornar mais claro para o cotista ou potencial investidor os mandatos dos fundos. O que nos preocupa mais é o investidor de varejo. Estamos entrando num cenário, que finalmente chegou, em que a taxa de juros livre de risco está caindo e os gestores vão precisar mostrar seu valor. E terão de necessariamente caminhar na direção de risco privado e, com grande probabilidade, os ativos serão menos líquidos e mais arriscados do que dívida soberana. Tudo isso torna necessário que a escolha do investidor seja mais informada e consciente. E nós nos perguntamos o que pode ser feito para ajudar. A outra forma de garantir maior eficiência é melhorar a distribuição de fundos para que você consiga diminuir a desvantagem dos gestores independentes. De que forma isso poderia ser feito e que indução a CVM poderia dar? É uma agenda importante porque cada vez mais a taxa de administração é um fator importante para a rentabilidade que o investidor realmente leva para casa.

Valor: Quais discussões o nosso mercado ainda vai ter de enfrentar?

Maria Helena: Nessa agenda de fundos, a CVM talvez ainda terá de enfrentar as questões sobre os possíveis conflitos de interesse nas estruturas verticalizadas que temos. O mesmo conglomerado financeiro é o do administrador, do custodiante, do gestor da carteira e do que distribui. Talvez seja preciso avaliar se é preciso adotar salvaguardas para essas situações. Nas próximas semanas, vai para debate público essa mesma discussão, só que nos fundos de direitos creditórios. Experiências tristes nos levaram a perceber que a regulamentação não tratava adequadamente todas as situações.

Valor: Só na área de fundos ainda há muitos desafios?

Maria Helena: Há a questão das pequenas e médias empresas e se tem algo que pode ser feito para facilitar o acesso delas ao mercado. Estamos num esforço de diagnóstico. O que tenho claro é que não existe a bala de prata. São diversos pequenos ajustes. É o que temos visto fazer a diferença e que pode destravar esse mercado. Estamos dispostos a ouvir e melhorar as condições para isso possa acontecer. Há vários mercados no mundo, economias que aspiramos ser comparáveis, como Austrália, Canadá, Coreia do Sul, em que o volume de novas companhias a cada ano é muito maior do que vemos aqui. A impressão que eu tenho é que preciso identificar o que eles fizeram para isso ser viável e identificar o que é preciso corrigir aqui, nas várias dimensões, para isso também ser possível.

Valor: Sem um mercado ativo para captações, as companhias ficam sem incentivo para avanços voluntários em governança?

Maria Helena: Infelizmente, essa discussão de governança dentro das empresas ainda não é situada como teria que ser, como algo estratégico para o desempenho e sustentabilidade do negócio. Algo essencial para as pessoas poderem fazer seu trabalho com a segurança de que tudo está sob controle. O fato de não ter demanda por ofertas, especialmente para as companhias que ainda não são abertas, dá uma freada nesse processo.

Valor: Em termos de novos produtos, o que poderíamos ter?

Maria Helena: Acho que é algo que já está na pauta: produtos negociados em bolsa são boas alternativas. Então, regulamentar ETF de renda fixa, de fundos estrangeiros... seria interessante. Mas garantindo simetria, tratamento isonômico em relação ao que os gestores podem fazer. São produtos que costumam ser baratos e podem ser interessantes, se não for permitida alavancagem e produtos muito sintéticos - que acho que são os riscos normalmente associados a alguns ETFs lá fora. São produtos econômicos e úteis para diversificação de risco, para indivíduos e para gestores.