Título: Lula: acertos na macropolítica e erros na micropolítica
Autor: Ribeiro, Ricardo M.
Fonte: Valor Econômico, 26/09/2006, Opinião, p. A14

O governo Lula errou na ¿micropolítica¿ (o trato com o Congresso e os partidos), mas acertou na ¿macropolítica¿ (relação com atores sociais e políticos fundamentais da democracia moderna). Por isso, tem tudo para conquistar nas urnas o maior prêmio do jogo político: a chance de ficar mais quatro anos no poder. Ou pelo menos tinha, antes da malograda operação de compra de um dossiê contra José Serra. Evento que só reforça a tese central do texto: Lula e o PT foram um desastre na micropolítica.

Nessa área, Lula errou desde o início, quando atropelou as articulações de Dirceu com o PMDB e rejeitou os acertos do então futuro chefe da Casa Civil com os pemedebistas. Outro equívoco foi o anúncio de que na administração do PT partido nenhum receberia ministério de ¿porteira fechada¿. Isto é, não poderia ocupar de alto a baixo todas vagas disponíveis na estrutura burocrática.

Era óbvio que essa determinação criaria conflitos entre os aliados e o PT, a quem coube a incumbência de vigiar os demais. É bom lembrar que a raiz do escândalo do mensalão foi justamente os atritos entre os partidos governistas. Além do mais, o veto à porteira fechada valeu apenas para os aliados e não para o PT, que, via de regra, dominou de alto a baixo os ministérios comandados por petistas.

Depois desses erros inaugurais, Lula e os altos escalões do governo e do PT continuaram falhando no atacado e no varejo da micropolítica: nas desastradas reformas ministeriais; na errática relação com o PMDB, na falta de pulso para enfrentar os projetos pessoais de João Paulo Cunha e José Sarney, que paralisaram o Congresso por meses com a tentativa de aprovar emenda que lhes daria a possibilidade de continuar nas presidências da Câmara e do Senado; na inepta condução do processo que desembocou na eleição de Severino Cavalcanti; na sem-cerimônia com que o PT passou por cima de aliados no pleito municipal de 2004, e por aí afora.

Todos esses episódios foram o prelúdio do mensalão, crise que, vista aos olhos de hoje, ganha ares de inevitável, dado o acúmulo de equívocos na condução da micropolítica. Relembrando-os, surpreende a facilidade com que Lula estava conseguindo a sua reeleição. O que explica o ¿fenômeno¿ é o fato dele ter conduzido bem a macropolítica. Foi competente na relação com os atores fundamentais na moderna democracia: a elite econômica (senão toda ela, pelo menos a parcela mais relevante) e a maioria do eleitorado (no caso brasileiro, pessoas com renda familiar inferior a dois salários mínimos).

Lula acertou com o primeiro desses atores quando conservou as linhas mestras da política econômica de FHC. E acertou com o segundo quando decidiu ampliar o Bolsa Escola, transformando-o no Bolsa Família e dando continuidade a uma política que também teve origem no governo anterior. A manutenção da estabilidade econômica também foi importante para garantir o apoio das classes de menor renda. Manter políticas bem sucedidas da administração FHC é mais virtude que vício do governo Lula. Apesar de a facilidade com que a elite petista aderiu ao ideário econômico antes chamado pejorativamente de ¿neoliberal¿ indicar certa frouxidão de idéias.

-------------------------------------------------------------------------------- Lula beneficiou-se com os erros e com a inapetência pelo poder revelados pela oposição, além dos acertos na macropolítica --------------------------------------------------------------------------------

Além do acerto na macropolítica, Lula beneficiou-se dos erros e da inapetência pelo poder revelados pela oposição. Investir no impeachment talvez não fosse mesmo possível, considerando-se a falta de apoio popular à tese e a elevada probabilidade de que qualquer iniciativa nesse sentido fosse barrada logo na Câmara. Mesmo assim, a oposição poderia ter sido mais incisiva no combate ao governo Lula. Poderia ter investido na tarefa de desgastar a imagem do presidente, atribuindo a ele com clareza no mínimo a responsabilidade política pelos escândalos. Somente agora, na reta final da campanha, o presente dado pelo setor de inteligência (sic) da campanha lulista levou a oposição a adotar linha de confronto mais direto contra o candidato petista.

Antes de sua campanha ser atingida pelo caso dossiê, a percepção geral era que o petista estava quase reeleito e Lula já vinha dando os passos iniciais para o seu segundo mandato. E nessas ações de preparação do segundo mandato, continuava jogando bem na macropolítica e emitindo sinais preocupantes na micropolítica.

No plano macro, acenava ao eleitorado com uma reforma política que seria capaz de resolver as alegadas distorções do sistema político. Ao mesmo tempo, para a elite econômica, sinalizava que iria retomar as tão demandadas reformas e reafirmava o compromisso de manter a atual política econômica. Tudo isso amarrado com o embrulho vistoso de um entendimento amplo pelo bem do país.

Na micropolítica, é preocupante a idéia de convocar uma assembléia constituinte exclusiva para cuidar da reforma política. Se seguir adiante com esse plano, entrará em choque com o Congresso e pode cevar novas crises. São temerários também os sinais de que Lula, embalado pelas urnas, pode novamente resistir ao PMDB, negando ao partido participação estratégica em seu governo. Votações consagradoras compram algum tempo de tranqüilidade, mas não garantem que a eventual lua-de-mel com o Congresso e os partidos aliados será duradoura. Por outro lado, a tentativa de estabelecer um diálogo com a oposição mostra que Lula pode ter aprendido algo com os erros do primeiro mandato. Resta saber se as pontes não foram dinamitadas pelo caso dossiê.

No campo econômico, Lula provavelmente terá que enfrentar um cenário externo pior. Os otimistas acham que será apenas um pouco pior. Os pessimistas acreditam que a economia internacional poderá passar por sérios solavancos no futuro próximo. Não se sabe quem tem razão. De qualquer maneira, a situação será pior, o que pode atrapalhar a boa relação de Lula com o grande capital e com a parcela mais pobre do eleitorado.

Em suma, o que se pode vislumbrar por enquanto a respeito dos próximos quatro anos é que Lula continua afiado na macropolítica, é uma incógnita ¿ com viés negativo ¿ na micropolítica e pode ter que administrar sob ventos contrários no front externo. Sem contar que seu eventual segundo mandato pode transcorrer sob a ameaça de ser interrompido pela Justiça Eleitoral. Parece uma combinação propícia para muitas emoções até 2010.

Ricardo Luiz Mendes Ribeiro é economista e analista político da MCM Consultores Associados