Título: Candidato morno, Alckmin aquece discurso com o dossiê
Autor: Nassif, Maria Inês
Fonte: Valor Econômico, 26/09/2006, Especial, p. A16

Um pequeno séquito tucano esperava o candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin, na Estrada da Gávea, uma avenida tortuosa de duas mãos onde dois ônibus em mão contrária passam rente ao meio fio, quase invadindo a mínima calçada onde não cabe muito mais do que uma mulher segurando um filho pequeno pela mão. Era uma quarta-feira, 13 de agosto, e faltavam 18 dias para o primeiro turno. O pequeno grupo de jornalistas, fotógrafos e a equipe de campanha, na soma não mais do que 30, formava, porém, uma pequena multidão, quando se espremeu nas vielas da Rocinha, a favela-bairro do Rio - um caos urbano de cerca de 200 mil habitantes, cujo acesso às moradias, excluídas algumas acanhadas avenidas que o corta em pedaços, é feita por ruelas estreitas como uma porta, escadarias que dão a lugares e depois a outros - até que um estranho àquele mundo não tenha mais a mínima idéia de como sair. Lá dentro, pequenas bodegas dividem o espaço com pequenas moradias - e nesse formigueiro, onde os túneis constroem labirintos e, na maioria do tempo, é impossível ver a luz do sol, que Alckmin encontrou os favelados do Rio, ciceroneado pelo presidente da Associação da União Pró-Melhoramentos da Rocinha, William de Oliveira, que amargou uma cana, no ano passado, por suspeita de associação com o tráfico de drogas.

Uma calça de brim cáqui larga, ajustada por um cinto, mocassim e uma camisa branca, com discretas listas, movia-se impassível pelos corredores. A roupa continuou impecável: a camisa não sinalizava uma gota de suor, que abundava na roupa e rosto dos demais da comitiva. O sorriso, que ocupava o rosto na mesma posição de meia-lua, continuou impecável mesmo quando o peixeiro, na entrada de uma viela, respondeu a um grito do Amendoim - um negro de mais de 50 anos, magro, vestido com a camiseta do Fome Zero - para deixarem passar o "presidente" Geraldo. "Só se o Lula morrer. Só se matarem o Lula", resmungou o peixeiro, do lado da sua banca, afastando-se para deixar passar os intrusos. Por entre o sorriso, Alckmin destinou um "como vai", uma "boa tarde" e um "bom trabalho" às poucas pessoas que cabiam no beco, além de seus acompanhantes, e estavam à disposição para o cumprimento.

Foi daí que o candidato conheceu a surpresa da Rocinha. O beco sem luz, de repente, se estende para o Rio, por uma porta que não leva a dentro de lugar algum, mas ao lado de fora: uma laje suspensa no meio das casas amontoadas desvenda uma das mais bonitas vistas da cidade maravilhosa. Alckmin, o candidato do PSDB ao governo do Rio, Eduardo Paes, jornalistas e poucos escolhidos estão de frente para aquele quadro na parede do horizonte. O candidato vira de costas, deixa-se fotografar com o cenário ao fundo. O sorriso impassível não desvendou se aos seus ouvidos chegaram os gritos do rapaz encarapitado numa escada que não se sabe de onde saiu, nem para que serve: "Cadê meu fusquinha?"

Alckmin, então, postou-se para a entrevista: cercado de jornalistas, repetiu que o presidente Lula, candidato à reeleição, está com "salto alto". Um dia antes, depois de uma visita à Força Sindical, em São Paulo, disse a outros jornalistas, mas dos mesmos órgãos, que o presidente usava "salto 15". É com o mesmo tom de voz que falou sobre a corrupção no governo. Também havia sido assim na véspera. Na Rocinha, aproveitou para falar de urbanização, moradia, educação e saúde - tudo o que o bairro-favela precisa. Na Força Sindical, falou de emprego. Nos dois dias desfiou a teoria de que se, segundo a pesquisa do momento, ele subiu três vezes em seguida 1%, isso não significa simplesmente que estava abaixo do primeiro colocado, mas sim uma tendência a subir, o que o fazia apostar no segundo turno.

Na descida do morro por uma das avenidas - ainda era gente e movimento suficiente para subverter a lógica de que o trânsito só anda se nenhum carro parar numa das mãos, ou se os pedestres não ocuparem qualquer milímetro da rua - a favela, na hora do almoço, foi obrigada a parar. Nem todo mundo entendeu o que estava acontecendo. Apenas que era eleição. "Ih, acho que o Lula está por aí", disse uma menina que voltava da escola à colega, indiferente à profusão de cartazes do Geraldo e de outros 45, o número tucano, principal adversário do PT de Lula. Um movimento que não agradou a todos, desagradou a outros tantos. Antes de Alckmin chegar, o vice-presidente da associação de moradores, o tio Lino, exibia numa camisa amarela a gozação eleitoral do dia: os dizeres "Tio Lino" e um número fictício de candidato, o 171, uma alusão ao artigo que define o crime de estelionato. "Se fosse por mim, todo mundo aqui votava nulo. Quando a Rota vem e massacra o povo da Rocinha não sobe nenhum político".

Tio Lino saiu de cena quando Alckmin chegou. Mas, descendo o morro, os rapazes que cumprimentaram o candidato declararam o voto, assim que a mão abaixou e Alckmin virou de costas: "Ou voto branco, ou voto nulo", disse um. "No Lula não voto mesmo", falou o outro. Na Rocinha, ninguém gosta de dar nome, menos ainda sobrenome. Ou é apelido, ou nada. Os moços que disseram isso continuaram secretos, como é o voto.

No boteco, a parada obrigatória para o café. O menino pediu que pagasse um refrigerante. O candidato comprou, ensebou ali um pouquinho antes de ir para a rádio comunitária. Pegou criança no colo. Deu beijo em outra, que subiu pela mesa de bilhar para poder chegar até ele, ultrapassando aquela montanha de gente que ocupava o espaço minúsculo amontoado num ponto mais alto que a avenida que passa na frente.

Alckmin não bebe, mas adora um boteco. Toma café, come sanduíches ou arrisca um pastel. Come pouco, evita restaurantes - se já não gostava, conta um assessor, passou a gostar menos ainda no processo de disputa pelo lugar de candidato do partido à Presidência, quando a cúpula tucana foi flagrada com o seu rival, José Serra, no finíssimo Massimo, saboreando um cabernet Gregoletto a R$ 250 a garrafa, que acompanhou uma paleta de cordeiro com spaguetti. Tudo terminou na nuvem da fumaça de charutos do governador Aécio Neves e do presidente do partido, Tasso Jereissati, e em fotos nos jornais do dia seguinte. Neste dia, Alckmin, que não foi convidado para o ágape que, teoricamente, poderia selar o seu destino, estava em um churrasco regado a chope, homenagem ao deputado Alberto Goldman (PSDB-SP).

Se os fotógrafos tivessem de olho em Alckmin logo depois que venceu o considerado invencível Serra na disputa pela simpatia dos cardeais do PSDB, não teriam documentado nada ligado à nobreza política. Teriam-no flagrado num boteco da rua Tutóia, na Vila Mariana, convencendo o vereador José Aníbal a abrir mão de sua candidatura ao Senado, para abrir espaço ao aliado nacional, o PFL, e a concorrer à Câmara dos Deputados. A dona do bar, uma portuguesa, serve seu prato feito preferido: arroz, feijão, salada, um frango.

O candidato tucano tem hábitos simples e é previsível - isso o remete à origem interiorana. O ex-prefeito de Pindamonhangaba, no entanto, traz de lá também a característica da desconfiança, escondida sobre uma aparente impassibilidade - o interlocutor jamais consegue saber se uma conversa o agradou ou não. Tem uma compulsão de anotar compromissos, informações e tarefas, geralmente num caderno universitário espiral, que serão cobradas depois com o mesmo tom de voz, mas insistentemente, até que o subordinado assuma falha, erro ou culpa. "Anotar é quase um exercício mnemônico", opina o jornalista Luís Salgado, seu assessor desde 1994, quando foi candidato a vice de Mário Covas. "No jatinho, quando pode falar ao celular, anota o que ouve nas bordas do jornal que está lendo". Alckmin só lê as sinopses feitas por sua assessoria depois que lê os jornais. A partir das leituras dispara telefonemas, com cobranças - quando governador, aos secretários; agora, aos assessores de campanha. Invariavelmente, faz a barba ao som do rádio de pilha, sincronizado nos programas matinais.

Alckmin sempre tem à sua volta um núcleo mínimo de de pessoas de sua confiança pessoal - a maioria deles conhecidos de longa data. Salgado estudou com seu irmão mais velho no ginásio. O advogado Orlando Assis de Baptista Neto é filho de um amigo de seu pai. Os dois são de Pindamonhangaba. O jornalista Luiz González, seu marqueteiro e sócio da produtora GW, faz a propaganda eleitoral do PSDB paulista desde a primeira eleição de Covas, em 1994, e foi, em disparado, a pessoa em quem Alckmin depositou toda a confiança que pode ter em alguém neste pleito. À pergunta "quem são nessa campanha as pessoas mais próximas de Alckmin", um tucano afirma, com convicção: "González, González e González".

A aposta na ciência do marketing de González foi total. Pressionado pelo PFL para endurecer o seu discurso na TV, no início de setembro, Alckmin reuniu seus aliados com o marqueteiro. Foi uma única vez e com um único propósito: para que González convencesse os pefelistas de que sua estratégia eleitoral estava certa, e ela passava obrigatoriamente por um período morno de propaganda, responsável por apresentar um candidato desconhecido fora das fronteiras de São Paulo ao resto do país.

A concentração de pessoas da confiança de Alckmin em São Paulo fez do Estado, na prática, o quartel-general de sua campanha. O escritório em Brasília, localizado num lugar de difícil acesso, tornou-se um apêndice do Instituto Teotônio Vilela, em São Paulo. Os poucos que ficaram ilhados no setor industrial de Brasília reclamam, mas reservadamente. "Precisamos acabar com a escravidão do marketing eleitoral", reclama um, para em seguida reconhecer que a culpa não é toda do marketing da campanha: "O Alckmin nunca briga, nunca altera a voz, mas só faz o que quer".

O adjetivo "controlado e frio" é usado por quem quer que conheça Alckmin, exceto pelos que privam de sua intimidade. A distância se estende a figuras do partido - ele não é um cardeal nem tem acesso a eles. A exceção é a recente aproximação com o governador mineiro, Aécio Neves, uma aliança de conveniência contra pretensões futuras do quase eleito governador por São Paulo, José Serra. O vereador José Aníbal, ex-presidente nacional do PSDB, fechou com sua pré-candidatura, deu muitos palpites - inclusive o que deveria se concentrar no Centro-Sul do país, já que o Norte-Nordeste era um caso perdido, pois Lula, nessas regiões, está com 60% a 70% dos votos. Não se sabe, no entanto, se Alckmin registrou a opinião ou se decidiu, no final da campanha, por outras razões, a seguir a estratégia de, primeiro, tentar garantir o primeiro turno onde existem possibilidades de rachar o eleitorado de Lula e, depois, partir para as áreas onde a preferência pela reeleição do presidente é mais forte.

Mas, se o partido nacional está distante para ele, o mesmo não se pode dizer a política regional paulista. Duas das pessoas mais próximas a ele são deputados estaduais, ambos com votação no interior do Estado: Edson Aparecido e Sidney Beraldo. Quando da constituição do PSDB, foi Alckmin o escalado para obter apoios no interior e montar diretórios municipais. No governo, deu atenção especial aos prefeitos, a quem conhece pelo nome, sabe das histórias e contas as suas de prefeito de Pindamonhangaba. No mesmo dia 13 em que se movimentou com elegância e distância no cenário na favela da Rocinha, teve à noite uma reunião com prefeitos no Clube Speria, em São Paulo. Reuniu mais de 400 dos 645 prefeitos do Estado, de todos os partidos, inclusive uns poucos do PT. Era seu habitat: lá, o enigmático Alckmin estava entre amigos. Abraçou, beijou, ouviu histórias, contou histórias - enquanto um deslocado José Serra, na mesa, na companhia da mulher Mônica, teve pouco papo.

Mas teve um dia em que Alckmin extravasou alegria longe de seu habitat: no dia 20 último, dia seguinte à trapalhada da campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujos arapongas foram presos tentando comprar um dossiê contra Serra do empresário Luiz Antonio Vedoin, o principal personagem da máfia dos sanguessugas. "Amigo querido, como vai você?", perguntava, feliz e efusivo, ao interlocutor no celular. Na cerimônia, o candidato que relutava, contra todas as opiniões, a partir para o ataque a Lula, abriu a reunião de programa de governo com uma frase inusitada para ele: "O assunto, hoje, não é programa de governo" - e lá foi: "Eu quero deixar de lado a questão eleitoral. Eu entendo que a questão hoje no Brasil é muito maior e muito mais grave até mesmo do que a questão eleitoral. Nós não estamos enfrentando uma candidatura, estamos enfrentando uma sofisticada organização criminosa incrustada no Estado". O entusiasmo mostrado pelo menos deu alguma visibilidade à opinião de sua esposa, Lu Alckmin, desde o início da campanha empenhada em visitar Estados e programas sociais e fazer campanha para o marido: "Geraldo escolheu a política como um sacerdócio, talvez por ser médico e por isso amar o ser humano".