Título: A responsabilidade dos sócios e o INSS
Autor: Martins, Gilberto Baptista
Fonte: Valor Econômico, 26/09/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Recentemente, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com base nos artigo 13 da Lei nº 8.620, de 1993, combinado com o artigo 124, inciso II do Código Tributário Nacional (CTN), decidiu que os sócios das sociedades limitadas respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos da sociedade ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Assim, mesmo que o sócio não esteja na administração da sociedade, responderá por quaisquer débitos da limitada, contrariando os comandos da Constituição Federal, do CTN, da Lei de Execuções Fiscais, do Código Civil e da Lei das Sociedades Anônimas, que exigem a comprovação de que o sócio ou administrador tenha dado causa ao referido débito por ato abusivo, praticado com violação à lei, ao contrato social ou estatuto.

Não obstante as incontestáveis argumentações da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 3.642 e da Adin nº 3.672 em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, tenciona-se, aqui, demonstrar a referida inconstitucionalidade por mais um ângulo de que os citados dispositivos não podem prevalecer sobre o histórico instituto de direito da limitação de responsabilidade para modificar o seu conteúdo e restringir o seu alcance.

Dispõe a Lei de Execuções Fiscais que a execução judicial para cobrança da dívida ativa da União e de suas autarquias será regida por esta lei, e que à dívida ativa aplicam-se as normas relativas à responsabilidade previstas na legislação tributária, civil e comercial. Assim, ao se perquirir pela responsabilidade pessoal do sócio será necessário, para o seu alcance, analisá-la sob a ótica do entrelaçamento das citadas legislações e não de forma estanque, pois "não existe um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil ou comercial. Os vários ramos do direito são parte de um único sistema jurídico" (Alfredo A. Becker).

A Constituição Federal prescreve que compete à lei complementar regular as limitações ao poder de tributar e estabelecer normas gerais às obrigações e aos créditos. A lei em foco - o CTN, no capítulo pertinente à interpretação e integração da legislação tributária no sistema jurídico - dispõe no artigo 110 que a lei tributária não pode alterar o conteúdo e o alcance de institutos de direito privado para definir competência tributária.

Salienta-se que o instituto da limitação de responsabilidade foi desenvolvido ao longo de mais de dois séculos para conceber a segurança legal ao investidor, o que possibilitou o desenvolvimento econômico e social de distintos países, permitindo-se a sua desconsideração, como forma de proteção aos credores, apenas nos casos de abuso de poder, infração de lei, contrato social ou estatuto, para alcançar os bens pessoais daqueles que deram causa a tais ilegalidades.

Devido aos irrefutáveis benefícios deste instituto, o mesmo foi inserido em nosso ordenamento pelo Código Civil de 1916 e pela Lei das Limitadas, de 1919. O primeiro consagrava o princípio da separação entre a pessoa do sócio e a sociedade (também princípio basilar de nossa ciência contábil), e o segundo prescrevia ser limitada a responsabilidade dos sócios ao total do capital social, e que somente os sócios gerentes responderiam para com a sociedade e terceiros, solidária e ilimitadamente, pelo excesso de mandato ou pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei. Destaca-se, que o Código Civil atual, que veio conjugar essas duas legislações, reafirma este consagrado instituto. Na mesma linha, o CTN de 1966 e a Lei das S.A. de 1976 solidificaram essa mesma prescrição. Por fim, a Constituição Federal de 1988 petrifica a questão (artigo 173, parágrafo 5°) ao determinar que somente os dirigentes poderão ser responsabilizados pela prática de atos abusivos, e que as punições deverão ser compatíveis com o seu tipo societário.

Ora, se qualquer inadimplemento resultasse na responsabilização pessoal de todos os participantes de uma sociedade, onde encontraríamos o sentido desse arcabouço de princípios e normas que ensejam a construção da pessoa jurídica e seus diferentes tipos societários? Certamente não mais existiria a limitação de responsabilidade na sociedade limitada e, por conseguinte, a própria sociedade limitada no âmbito tributário.

Destarte, torna-se insustentável a pretensão de se adotar as citadas normas à responsabilização do sócio e inócua a alegação de que o artigo 109 do CTN permitiria a desconsideração, pois não se pode aceitar, no caso específico, que os chamados efeitos tributários independam de sua causa. Se pudéssemos fazer a dissociação de tais efeitos de sua causa, os mesmos estariam criando uma regra autofágica de revogação de sua própria gênese.

Portanto, não há como se permitir, através das normas em foco, que todo o sistema jurídico atual, histórico e constitucionalmente assentado no instituto da limitação da responsabilidade seja modificado em seu conteúdo e limitado em seu alcance.

Portanto, seria de todo imperioso que o Supremo faça prevalecer os fundamentos históricos de tal instituto em nosso direito tributário, para extirpar de vez de nosso convívio jurídico esta nefanda prática fazendária de açoitar o contribuinte, e que sedimente o entendimento universal no qual o único solo apropriado à fertilização da atividade empresarial é aquele semeado com a garantia do valor da segurança jurídica.

Gilberto Baptista Martins é advogado especialista em direito tributário, sócio do escritório Braz, Mello, Baptista Martins Advogados, membro da comissão de direito tributário da seccional do Rio de janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ)

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações