Título: "No Mercosul não há livre comércio"
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 27/09/2006, Internacional, p. A15

Danilo Astori foi aluno, professor e reitor da Faculdade de Economia da Universidade de Montevidéu, estudou e lecionou na Cepal, no Chile, e exerceu mandato de senador durante quinze anos, eleito e reeleito pela Frente Ampla, coalizão esquerdista que ajudou a fundar. Em 2003, ainda como candidato a presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez anunciou em Nova York que, se ganhasse as eleições, Astori seria o ministro da Economia. No governo, Astori é o maior entusiasta da idéia de o Uruguai firmar um acordo bilateral com os Estados Unidos.

Em seu gabinete em Montevidéu, entre sorvos de chimarrão, o ministro deu entrevista ao Valor. Segundo Astori, não há livre mercado no Mercosul; Brasil e Argentina precisam de altas tarifas externas; Paraguai e Uruguai, de baixas. E, sobretudo, falta coordenação das políticas econômicas entre os quatro países. Mesmo com esses problemas, o ministro afirma que seria um erro o Uruguai abandonar o Mercosul.

Valor: Que importância o sr. ainda atribui ao Mercosul?

Astori : Sem dúvida, uma importância estratégica. É uma parte fundamental para a inserção econômica internacional do Uruguai. Todos os projetos de integração como o Mercosul são muito importantes. Por essa razão concordamos em ingressar nesta experiência em 1991, que, todos recordam, começou com encontros bilaterais entre Argentina e Brasil. Em 1990 e 1991, Paraguai e Uruguai se somaram à experiência, e o Mercosul foi fundado.

No Uruguai houve grande debate e participei ativamente, defendendo o ingresso no Mercosul e a ratificação do Tratado de Assunção. Já era senador pela Frente Ampla. Houve, também, grande debate dentro da esquerda. Mas triunfou a tese de entrar no Mercosul, todos os partidos apoiaram, o que revela que o Uruguai se decidiu pelo Mercosul como uma verdadeira questão de Estado.

Isto continua válido hoje, 15 anos depois, e, a meu juízo, seguirá válido no futuro, porque, se um projeto é estratégico, não perde essa condição por apresentar problemas.

Valor: Quais os problemas mais graves do Mercosul?

Astori : O sentimento de que há problemas é generalizado. Todo mundo vê. O importante é trabalhar para solucioná-los. Não vai ser fácil, porque os interesses de Brasil e Argentina não são iguais aos de Uruguai e Paraguai. Por exemplo, Brasil e Argentina necessitam tarifas externas altas. Uruguai e Paraguai, tarifas externas as mais baixas quanto possível. Brasil e Argentina têm políticas estaduais que não são iguais à nacional, que geram problemas tributários e comerciais, têm preferências locais, estímulos para o desenvolvimento regional. São todas medidas legítimas, mas provocam desequilíbrio em relação às economias pequenas (dos sócios do Mercosul). Brasil e Argentina se concederam vantagens mútuas que terminam prejudicando Uruguai e Paraguai.

Ao mesmo tempo, não há uma coordenação de políticas econômicas entre nossos países, nem, tão pouco, tem sido possível evitar decisões - unilaterais ou bilaterais - que terminam influindo nas outras economias. Dou outros dois exemplos: a desvalorização do Brasil, em 1999, teve um reflexo enorme no Uruguai, e o atual controle de preços na Argentina gera impacto em nossas possibilidades de competir no mercado argentino. Tivemos também situações gravíssimas, gravíssimas [repete], como os bloqueios que, desde a Argentina, se fizeram contra o Uruguai.

Por essa razão, o Uruguai entende que deve denunciar todos esses problemas, com muita franqueza e sinceridade. Não há livre comércio no Mercosul, há muitas dificuldades para aceder ao mercado ampliado. E não por problemas burocráticos. Se um funcionário na fronteira detém um caminhão de arroz uruguaio que ingressa no Rio Grande do Sul, demora um pouco, mas se soluciona. Nossos problemas são mais profundos, são problemas de politica econômica descoordenada. E isso faz com as soluções sejam difíceis.

Valor: Dentro desse quadro é difícil, mas será possível?

Astori : Sim. O Uruguai vem pleiteando que os demais sócios admitam a possibilidade de que busquemos pela via bilateral uma maior inserção fora da região, tratando de fazer com que seja compatível essa nossa busca com o fato de pertencermos ao Mercosul. O Uruguai necessita melhores resultados do que os obtidos até este momento no Mercosul.

Valor: O pleito foi apresentado oficialmente?

Astori : Foi pleiteado informalmente e, com um pouco mais de importância e formalidade, nosso presidente o apresentou ao presidente Lula, que é o presidente "pro tempore" do Mercosul . Está apresentado por escrito em uma carta. Foi-nos contestado que há boa vontade para considerar isso, sempre que não se afete, como disse o presidente Lula, o coração do Mercosul.

Valor: E o que é coração do Mercosul?

Astori : O coração do Mercosul é a Tarifa Externa Comum [TEC]. Foi o que disse o chanceler Celso Amorim, e tem razão. A parte mais importante de uma união aduaneira - muito imperfeita, isso sim, porque está perfurada por muitas situações excepcionais - é a tarifa externa comum. Então, dissemos: está bem, estamos de acordo. Teremos que conseguir que estes acordos bilaterais não destruam a Tarifa Externa Comum.

O Mercosul tem hoje ferramentas para conseguir isso. São a decisão 54 de 2004 e a decisão 37 de 2005. Estas duas decisões - a segunda regulamenta a primeira - foram tomadas para evitar outro problema que tem o Mercosul, a dupla cobrança da tarifa externa comum. O produto paga quando chega a um país, passa a outro e paga de novo. Essas medidas que ainda não estão vigorando permitiriam separar todas as importações que cheguem ao nosso país de fora da região e dar-lhes um tratamento diferente, segundo cumpram ou não a politica tarifaria comum, como regras de origem, etc. Deve-se respeitar tudo isso.

O possível dano que isso poderia causar a Brasil e Argentina é minúsculo. As importações extrazona que chegam a Uruguai e Paraguai, os dois países somados, são menos de 5% de todas as importações que chegam ao Mercosul. Como se vê, o predomínio é do Brasil e da Argentina. Não temos possibilidade de prejudicar nossos sócios maiores. Já para Uruguai e Paraguai isso seria muito importante.

Valor: O sr. se refere sempre a um acordo bilateral. A imprensa, daqui e do exterior, fala em um Tratado de Livre Comércio, TLC. O que vai acontecer?

Astori : Isso não está definido. O conceito de acordo bilateral é mais amplo do que o conceito de um TLC. Um acordo bilateral pode ser um TLC ou não. O TLC é uma das modalidades possíveis. Então, não posso dizer se vai haver ou não um TLC como o que o Uruguai já tem com o México, que o Mercosul, por sinal, aceitou e que qualquer país do Mercosul pode utilizar como seu. Até que ocorra uma negociação e se estabeleça um formato, não posso saber se será um TLC ou não.

Mais que o formato, nos interessa a possibilidade, sou muito sincero, de poder vender mais no mercado dos Estados Unidos. Mais carne, mais lácteos, mais têxteis, produtos de software, de tecnologia de informação, mais arroz. Ao mesmo tempo, nos interessa muito receber investimentos dos Estados Unidos, Até agora, o maior fluxo de investimentos que recebeu o Uruguai vem da Europa. Igual que o Brasil. A Europa é a principal origem dos investimentos no Mercosul.

Valor: E os investimentos brasileiros no Uruguai?

Astori : Há investimentos brasileiros, mas são de volume pouco importante. Agora, por exemplo, ingressou no mercado o Banco Itaú, que sucede ao Boston e é uma presença importante. Há capitais brasileiros na indústria alimentícia, no campo, em alguns setores de serviços, como turismo e atividades conexas. Mas a verdade é que ainda não chegam a ser de um volume importante, algumas são associações, têm pouco valor agregado.

Quem na área energética se destaca enormemente é a Petrobras, que adquiriu os ativos da Shell. Mas é muito importante que a Petrobras esteja aqui, sobretudo para futuros negócios. Por exemplo, prospecção de petróleo aqui na plataforma, aproveitando a experiência brasileira, ou atividades associadas à Ancap, nossa empresa petroleira.

Em turismo, ocorre algum investinento, capital novo. Na agroindústria são capitais brasileiros que se instalaram para produzir em terra uruguaia, especialmente na zona de fronteira, departamentos de Rivera, Cerro Largo, Treinta y Tres. Isso vem de tempos, há ótimas relações de vizinhança.

Valor: Os senhores têm queixas da condução da política macro-econômica do Brasil?

Astori : Não. Não temos queixas nem reclamações. Temos visão muito parecida de política econômica. O que faz falta é a coordenação com todos os países do bloco.

Valor: E esse fundo estrutural que se está criando para ajudar aos países frágeis do Mercosul? Que contribuição pode dar para um melhor desempenho do bloco?

Astori : Já votaram todos, menos a Argentina, que ainda tem que ratificá-lo. O fundo pode ajudar, sem dúvida, a realização de projetos de infra-estrutura.

Valor: Uruguai tem projetos a apresentar?

Astori : Evidentemente. Por exemplo, na área de integração infra-estrutural com o Brasil, temos nada menos que a energética, fundamental para nós. O Uruguai é um país muito dependente em matéria energética. A integração com o Brasil é fundamen-talmente a integração de energia elétrica. São também necessárias obras para assegurar o fornecimento de gás originado na Bolívia. Nesse aspecto, as coisas estão funcionando bem. As obras de integração viária são muito importantes também.

Valor: Como deve ser interpretada, com exatidão, a posição do Uruguai? Qual é a mensagem aos seus sócios?

Astori : Quero reafirmar nossa convicção da importância estratégica do Mercosul. Vamos continuar trabalhando para aprimorar o Mercosul, mas entendemos que as necessidades do Uruguai também exigem progredir fora da região, sem comprometer nossa participação no Mercosul.

Pedimos que se entenda que o Uruguai necessita, junto com o Paraguai, um pouco mais de flexibilidade para poder encarar esses acordos fora da região.

Valor: De seu último encontro há duas semanas com os industriais brasileiros na Fiesp, já há resultados concretos?

Astori : Não de imediato. Mas seguramente vai ter bons resultados porque percebi um clima de muito interesse dos industriais. Foi a terceira vez que fui à Fiesp. A primeira, ainda antes da eleição, acompanhando o presidente Tabaré. Fui logo depois de ser indicado ministro da Economia. E agora. Há sempre muita cordialidade nesses encontros...

Valor: Em que setores o Uruguai tem vantagens comparativas importantes para atrair investimentos? Agroindústria?

Astori : Carnes, lácteos, cultivos, em particular oleaginosos. Há também o complexo florestal. Este último se baseia na política de reflorestamento que o país seguiu durante os últimos vinte anos e que resultou num produto mito bom para os fabricantes de celulose e papel, adaptável também a outras produções industriais como a de móveis. Agora o Uruguai desenvolve indústrias de alto valor agregado no setor florestal com capitais europeus muito volumosos. Botnia é investimento de mais de 1,2 bilhão de dólares. É o maior investimento que a Botnia faz no exterior e o maior que sai da Finlândia. A espanhola Ence, por sua vez, está investindo 700 milhões de dólares.

Valor: A oposição da Argentina a essas fábricas de celulose à margem do rio Uruguai não é um dos motivos para que os uruguaios se sintam desanimados e cogitem desistir do Mercosul?

Astori : Não, não vamos desistir do Mercosul. Seria um erro muito grande. Não vamos cometê-lo. O que se passou na Argentina nesse assunto das papeleiras foi um problema a mais. Mas muito grave, nâo? O que a Argentina fez causou muito dano à economia uruguaia.

A ligação por Fray Bentos [cidade no Uruguai] e Gualeguaychú [na Argentina] é das melhores, mais práticas, mais rápidas, para chegar à Argentina, ao Brasil, Paraguai, Bolívia, Chile. Imagine o prejuízo ao turismo, ao ingresso de pessoas, ao comércio de toda a região. Mais de mês com a rodovia interrompida por barricadas! (Paulo Totti)