Título: A desaceleração nos EUA e o mundo
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 27/09/2006, Opinião, p. A17
A economia mundial está desfrutando uma seqüência gloriosa. Em 2003, 2004 e 2005 teve seus melhores dias desde o começo da década de 1970. Isto, porém, não é um paralelo encorajador. A tórrida expansão do começo da década de 1970 conduziu a um período de turbulência inflacionária. Precisamos perguntar se o extraordinário crescimento dos anos recentes também não oculta perigos - diferentes, talvez, mas mesmo assim significativos. A resposta, infelizmente, é sim.
Duvidar da flexibilidade da economia mundial agora pode parecer perverso. Desde 2000, ela superou tantos obstáculos: traumas pós-bolha no Japão; o estouro de uma bolha no mercado acionário global; os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001; uma recessão dos EUA; anos de estagnação na zona do euro; guerras no Afeganistão e no Iraque; preço real do petróleo em níveis próximos aos do fim da década de 1970; e a incapacidade de completar a Rodada Doha de negociações para o comércio multilateral. Mesmo assim, apesar de tudo isso, o crescimento da economia mundial foi de 4,3% em 2003, 5,3% em 2004 e 4,9% em 2005, medido pelo critério de paridade de poder de compra das taxas de câmbio. No mais recente Panorama Econômico Mundial (WEO) do Fundo Monetário Internacional (FMI), a projeção é atingir 5,1% neste ano (World Economic Outlook, www.imf.org).
O crescimento também é amplamente compartilhado: em 2006, como indicam os técnicos do FMI, será de 3,4% nos EUA, 2,4% na zona do euro e 2,7% no Japão. Nos mercados emergentes, ele é muito mais alto: 8,7% na Ásia em desenvolvimento, 6,8% na Comunidade de Estados Independentes, 5,8% no Oriente Médio, 5,4% na África, 5,3% na Europa Central e Oriental, e 4,8% no Hemisfério Ocidental.
Como foi possível à economia mundial superar tantos obstáculos? Podemos oferecer três respostas: primeiro, o poder das forças motrizes fundamentais da expansão econômica - o crescimento da produtividade dos EUA, a globalização e a ascensão da Ásia; segundo, a capacidade dos bancos centrais e das autoridades fiscais de explorar a credibilidade que conquistaram nas décadas de 80 e 90 em resposta aos choques da década de 2000; e, especialmente, o papel dos EUA como tomador de empréstimo de última instância.
Para avaliar os riscos adiante, precisamos perguntar se estas forças benignas correm risco. Infelizmente, sim. Isso explica por que o WEO corretamente salienta que as probabilidades de desempenho abaixo da expectativa são muito maiores do que as probabilidades de ficarem acima do esperado. Em particular, uma combinação de demanda enfraquecida dos EUA, dólar em queda, inflação refratária e uma rodada de protecionismo podem ameaçar a nossa história feliz.
No momento, possivelmente um sétimo da poupança bruta do resto do mundo (e uma proporção mais alta da sua poupança líquida) estão sendo absorvidos pelo déficit em conta corrente dos EUA. Esse excesso de poupança em relação aos investimentos no resto do mundo não é o resultado das taxas de juros reais globais ou dos EUA. A poupança superavitária do resto do mundo e a conseqüente demanda por ativos dos EUA estão impulsionando os atuais déficits, e não ao contrário.
Mais precisamente, o Japão, a Ásia emergente e, mais recentemente, os exportadores de petróleo, geram os enormes excedentes de poupança em relação aos investimentos que os EUA estão absorvendo. O desafio para os formuladores de política dos EUA, portanto, será manter a demanda interna no nível necessário para sustentar altos níveis de atividade econômica interna, apesar dos enormes déficits.
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Atualmente, estes formuladores de política precisam manter a demanda cerca de 7% acima dos níveis de produção em ambiente de pleno emprego. Eles só dispõem de dois veículos: déficits financeiros da iniciativa privada e do governo (excesso de gastos em relação à renda). Nos cinco anos passados, ambos têm contribuído. Mas o elemento dominante tem sido o colossal e inédito déficit financeiro das famílias dos EUA. Enquanto isso, estrangeiros e empresas têm sido provedores de fundos.
A desaceleração atual no setor da habitação, pode, no entanto, induzir as famílias a reduzirem as suas despesas radicalmente. O HSBC conta exatamente esta história num informe recente ("Tripping Up: the End of the US Economic Upswing", setembro de 2006"). O argumento é que a política monetária frouxa após o colapso da economia da bolha em 2000 promoveu um surto de consumo liderado pelo setor de habitação que finalmente está chegando ao fim. O consumo já não crescerá a um ritmo mais rápido que a renda e, sim, apenas num ritmo mais lento.
Considerando-se que as importações representam só cerca de um sexto do PIB dos EUA, a redução na demanda do setor habitacional só melhoraria um pouco o déficit externo. Mas a economia se desaceleraria e o desemprego aumentaria. Uma resposta - outro robusto incentivo fiscal - pareceria irresponsável. A inflação persistentemente elevada limitaria outra resposta possível - um corte agudo nas taxas de juro de curto prazo - uma vez que essa medida poderia abalar a confiança no dólar, elevando, portanto, nos juros de longo prazo. Um forte aumento no investimento corporativo nos EUA também parece implausível se a economia se desacelerar.
Suponhamos que estes eventos ocorressem na véspera da próxima eleição presidencial. As exigências de um dólar mais fraco e de proteção contra as importações poderão saltar a níveis ensurdecedores. Essa pressão seria dirigida contra a China, que está com um superávit em conta corrente de mais de 7% do PIB, apesar de ser uma beneficiária líquida de substanciais ingressos de capital de longo prazo, e de estar engajada numa intervenção maciça que visa manter a sua moeda deprimida.
O que estamos discutindo é a possibilidade de um desencadeamento desordenado dos déficits externos, cujo gatilho seria uma acentuada desaceleração na demanda das famílias dos EUA, que estimularia a pressão interna pelo realinhamento da moeda e por proteção. Se, como é provável, isto também enfraquecer a demanda externa por ativos dos EUA, as taxas de juro de longo prazo dos EUA subirão, ameaçando a capacidade do banco central de afrouxar a política monetária, ao mesmo tempo mantendo a credibilidade.
O resto do mundo já não terá necessidade de aumentos adicionais nos déficits externos dos EUA. Mas ele tampouco desejará ver o país se contrair de forma brutal ou rápida demais. Se a demanda interna dos EUA se debilitar, porém, uma grande correção do déficit externo é exatamente o que a maioria dos americanos gostaria, pois isso seria preferível a uma recessão interna. Eles iriam gostar de exportar a sua desaceleração.
Em suma, a economia mundial não se depara apenas diante de um risco, mas, também, de um teste: o de administrar um declínio no vasto excedente de gastos das famílias dos EUA em relação à sua renda. Terá condições de administrar isso facilmente? A resposta é: só se outros, por sua vez, forem capazes e estiverem dispostos a expandir a demanda substancialmente. Quais são as probabilidades de isso acontecer? É difícil ser otimista.