Título: Em vôo turbulento, Lula aterrissa em praça pública
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 27/09/2006, Especial, p. A18

Era madrugada e dormiam quase todos no vôo Salvador-Belém. Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República em sábado de candidato, apareceu no corredor do Boeing 737 e sorriu aos quatro jornalistas que o acompanhavam desde Aracaju, passando por João Pessoa, Feira de Santana e Salvador, tudo no mesmo dia e com comícios em cada parada. Durou pouco o sorriso e a conversa onde ele negava ter falado, dias antes, em demônios adormecidos e desejos de fechar o Congresso. Até ali, o candidato voava em céu de brigadeiro, sem desvio de rota. Foi quando o avião topou com uma turbulência, e a campanha, com urubus de turbina.

O súbito sacolejo nas primeiras horas do domingo 17 de setembro forçou Lula a retornar ao seu assento e apertar o cinto, mas o desconforto passou logo; o urubu com formato de dossiê e contornos de escândalo, não. Logo decapitou o coordenador da campanha, Ricardo Berzoini e fez mais vítimas entre petistas churrasqueiros e arapongas destrambelhados com nomes esquisitos que contemplam do mestre da psicanálise ao chuveiro elétrico. Isso sem falar da trama de romance policial de serem apanhados em um hotel com R$ 1,7 milhão - que, a quatro dias da eleição, não se sabe de onde veio. Lula não achou graça nenhuma no estrago do dossiegate: as pesquisas de intenção de voto, que até então davam como certa uma vitória histórica e esmagadora à reeleição, no primeiro turno, começaram a se mover. "Não gosto de situações que não controlo", confessara no avião, ao explicar porque detesta voar, com ou sem turbulência, horas antes do vendaval do dossiê.

Aquele fim de semana foi o divisor de águas em uma campanha cujo favoritismo de Lula já apontava para a divisão da oposição, motivo por que Fernando Henrique Cardoso escreveu uma longa carta conclamando seus pares a levantar barricadas contra seu sucessor.

A partir desse momento, a campanha não parou mais de subir o tom, até atingir os céus. Em comício mignon pós-dossiê, no domingo passado, em Sorocaba, Lula disse que ia deixar a modéstia de lado, avisou que ganharia no primeiro turno e lembrou que até Jesus Cristo foi traído. Mais uma vez Fernando Henrique lideraria a reação, demonizando seu sucessor.

O candidato que comparou-se a Cristo nunca esteve tão distante da Igreja Católica numa campanha eleitoral. No começo do governo, a relação chegou a ser até cordial, culminando com a ida de Lula ao encontro anual da CNBB, em Itaici (SP), a primeira de um presidente ao evento. O distanciamento se esboçou assim que a agenda política do governo começou a flertar com o reconhecimento da união entre homossexuais, a legalização do aborto e o uso de embriões nas pesquisas com células-tronco. O arrepio ficou explícito durante os funerais de João Paulo II. Na ocasião, o arcebispo do Rio de Janeiro, cardeal dom Eusébio Oscar Scheid, disse que Lula é "caótico e não católico". Iniciada a campanha, a única manifestação pública da Igreja foi um documento que orienta eleitores, exige ética e combate a corrupção.

Com os evangélicos, por outro lado, a relação parece ter-se estreitado. O recente apoio à reeleição, dado pelo ministério Madureira da Assembléia de Deus, sinaliza que Lula venceu a rejeição que costumava ter neste rebanho de fiéis e herdou parte do eleitorado que, em 2002, foi de Anthony Garotinho.

A campanha, agora, tem antigos adversários repartindo o mesmo palanque e velhos amigos observando à distância. Frei Betto, por exemplo, o ex-coordenador de mobilização social do Programa Fome Zero, diz que continua votando em Lula porque acha que o Brasil é melhor com ele do que sem ele. Mas espera que, no segundo mandato, abra-se a porta de saída do Bolsa Família e se faça a reforma agrária. O empresário Eugenio Staub, que há quatro anos deu apoio público e financeiro, hoje só é visto em Brasília para participar das discussões da TV digital. O MST é a maior grife do chamado "apoio crítico". Aqui, o dissabor é com o discurso do agronegócio emparelhado ao da agricultura familiar, dos transgênicos e das alianças no Parlamento, da timidez da reforma agrária. Nos comícios de agora, contam-se nos dedos as bandeiras do movimento.

Tudo é diferente, no entanto, quando é hora de palanque. Lula aparece menos carrancudo que o sindicalista de antes, já passou pelo "Lulinha Paz e Amor", mas se revela sempre sangüíneo. Às vezes, literalmente. "Quando saíram as primeiras pesquisas e eu estava em primeiro lugar, eles não entenderam. Pensaram: como é que nós, que tínhamos condenado este homem, caçado ele, como é que ele ressurge com esta força? Teve até um senador que disse 'precisamos fazer o Lula sangrar até a última gota, para ele chegar na eleição morto'", contou a paraibanos de João Pessoa, reunidos em comício num sábado. "É que eles não sabiam que eu poderia fazer uma transfusão de sangue com o povo brasileiro. E voltar para a política com milhões de células de sangue do povo paraibano, pernambucano, cearense, nordestino!". A multidão não o deixa acabar de falar.

Onde Lula tem votos de enxurrada não parece pesar se o crescimento do país tem sido um desalento, se o gasto público aumentou, se o Banco Central segue sua toada conservadora, se o Mercosul está combalido. Pesam os ponteiros da distribuição de renda, a novidade de poder consumir, o interruptor da luz elétrica. Vera Gomes, dona de uma loja de artesanato na feira de Caruaru, diz que "mensalão é mais política, eu não acredito. Política é um engolindo o outro. Eu não vou ao comício pelo PT. Vou mais pela pessoa dele mesmo." Na loja em frente, Uélina Menezes, 17 anos, vota pela primeira vez e não tem dúvidas: "É Lula, claro. Ele ajudou os estudantes. Vai botar uma universidade federal aqui, todas as outras são particulares. "

Em alguns lugares do Nordeste, Lula pode acabar as eleições com superlativos que ninguém jamais teve. "Eu perdia as eleições por causa do povo pobre", repete no palanque. "O povo não acreditava que um deles pudesse fazer coisas. Porque estava acostumado que tinha que vir um senhor do engenho e não um cortador de cana para governar o país", contou em João Pessoa, subindo o tom de voz no fim da frase.

Quem está na primeira fila não se aguenta. "Mas eu quis foi você!", grita uma senhora de blusa azul, enrolada numa bandeira, apertada entre grade e multidão. E Lula prossegue: "É com orgulho que digo, eu me considero o presidente dos pobres deste país!". É interrompido pelos gritos de "Lula, Lula, Lula!". A senhora de azul chora. Levantou às 4h da manhã para vir ver o homem. "Eu me acordei e disse em casa: não me peçam nada, que hoje eu tô de Lula", conta Maria das Dores Lourenço Alves.

No palanque, Lula está em casa. São, diz, 40 anos de comícios. Reconhece se o microfone é estridente, sabe o que dizer a cada público, gesticula, emociona. Não raro, se contradiz. Numa sexta-feira à tarde foi a Natal e disse no ato público que continua lutando para que a transposição do São Francisco saia do papel, reproduziram os jornais locais. Horas depois, em Aracaju, foi ambíguo e falou apenas na revitalização do "Velho Chico".

Ao subir as escadas do palanque é anunciado pelo mestre-de-cerimônias como um astro do showbiz. Quando surge, costumam estourar rojões; quando vai embora, podem cair do céu pedacinhos prateados de papel no melhor estilo Rolling Stones. O Bolsa Família é ponto alto do discurso, assim como a queda no preço do arroz, do óleo, do saco de cimento. Se está entre jovens, como na Cidade de Deus, no Rio, reforça o Pró-Uni; em Feira de Santana diz que foi baiano em outra encarnação e que a baianidade "é um estágio superior do ser humano." Em Salvador, onde comício tem tecnologia de Carnaval, uma senhora aguarda ao lado do camarim o fim do evento. É a lavradora Iany Brito, 74 anos, uma ponte de safena. Percorreu 800 quilômetros, de ônibus, só para vir ao comício. "Porque eu tenho que ouvir o Lula, eu morro por causa dele. O dinheiro do Bolsa Família mudou a vida de muita gente."

A empatia também surge dos discursos personalizados. "Como eu vivi até os 7 anos de idade em um casebre, à luz do candeeiro, quero me tornar o presidente da República que apagou o último candeeiro neste país, levando luz elétrica à casa das pessoas." Em outros, momentos, a fala é estratégica. Nos últimos comícios desta campanha, por exemplo, Lula repetiu ter sancionado, há poucos dias, a lei que pune com mais rigor a violência contra a mulher. "Minha mãe dizia pra mim: a mão do homem não foi feita pra bater. Foi feita para trabalhar, levantar os filhos e fazer cafuné nas nossas mulheres!" Nestas horas, embora o jingle criado por João Santana e o baiano Kapenga tenha colado na cabeça dos ouvintes como um mantra ("É o primeiro presidente que tem a alma do povo e a cara da gente (...) onde o presidente é povo e o povo é presidente"), o povo entoa o "olê olê olê olá" de tempos mais entusiasmados.

O palanque de Lula desta eleição é como coração de mãe - tem lugar para amigos de ocasião, inimigos de longa data e fãs de sempre. Em Caruaru, recebeu no palanque os índios Xucuru; em Belém, chamou uma pescadora; em Sorocaba, colocou ao seu lado um catador de papel. Enquanto deixa os outros falarem, Lula escuta, recebe (e abre) cartas e bilhetes, quadros e flores, acena para um e outro na platéia, anda pra cá e pra lá, mexe na barba à altura do bigode, assina camisetas e veste bonés.

Nos tempos de sindicalista, quando sua palavra de ordem era "reivindicação", dizia que governo e empresários não entendiam "patavina" de trabalhadores. Agora, na versão 2006, o candidato-presidente adota um "na história deste país" a cada meia-dúzia de frases. Quando tudo termina, e se acontece de lhe dar na veneta, desce do palanque. É a hora do terror para a segurança. O general de brigada Marco Gonçalves Dias, chefe da segurança da Presidência da República, vira 'jedi' e puxa para si o homem que o povo quer tocar, abraçar e içar para o outro lado. Lula sai torto deste messiânico corredor de carências - pingando de suor, o cabelo grudado, a camisa colada ao corpo, a cara amassada - mas todo pimpão e feliz.

Tudo isto é comum e corrente acima do Trópico de Capricórnio. Entre outros públicos e em outras latitudes, a atmosfera pode ser glacial. Foi assim no final de agosto, quando veio seguido a São Paulo, cumprir uma agenda híbrida, meio de presidente, meio de candidato. Numa ocasião foi visitar um novo terminal de grãos no porto de Santos. Veio como presidente, de helicóptero; a expectativa, entre os empresários era burocrática e sem entusiasmo. Lula chegou, escutou explicações sobre a maquete da ferrovia que liga o Centro-Oeste ao Porto de Santos. Na hora de falar, deu a deixa: "Vamos ouvir Olacyr", sugeriu. "Era dele o sonho desta ferrovia." Olacyr de Moraes, que já foi chamado de "rei da soja" e hoje tem credores em seu encalço, emocionou-se e chorou. Os empresários, surpreenderam-se. Quando foi embora, parecia que Madonna tinha passado por ali, gravando um clipe com estivadores.

Mas na rua onde ele viveu a infância, em Vicente de Carvalho, vindo de pau-de-arara direto de Garanhuns, a faxineira Lucileide Carmo, 42 anos, diz estar arrependida de ter votado nele. "Esperava mais emprego, o custo de vida mais baixo. Só teve foi mais violência." Ela agora vai tentar Heloisa Helena. "Quem sabe uma mulher muda alguma coisa."

Nesta campanha, o presidente-candidato está mais só. Seu governo parece ter incorporado a citação do filósofo José Ortega y Gasset -- "A política é a arquitetura completa, incluindo os sótãos". Nos 40 comícios que fez pelo país, dificilmente citou o PT e, na platéia, a cor vermelha das bandeiras ainda é intensa, mas nem sempre dominante. Os críticos dizem que Lula descoloriu o socialismo; outros entendem que ele se descolou do PT. Lula repete que "política se faz com quem se tem, não com quem se quer." Até o irmão que o introduziu ao sindicalismo, José Ferreira da Silva, o "Frei Chico", diz que só vai vê-lo quando ele "voltar à normalidade." E explica: "Lula não teve mais paz desde que pôs na cabeça que ia virar presidente. Não parou mais de ter compromissos. Acho que deve ter uma saudade da gota de prosear, de fazer o que gosta."

O presidente não demonstra ansiedade por voltar à planície. Parece achar perfeitamente normal aquela avalanche de mãos que tentam tocá-lo por onde passa. Com o acirramento de sua campanha, joga-se cada vez mais nessas mãos, mas demonstra que, se reeleito, não pretende tê-las como único sustentáculo.

Na tarde do fim de semana em que peregrinou pelo Nordeste, à entrada do furacão em que se transformaria a reta final de sua campanha, Lula falou pela última vez em tom de presidente reeleito. E mencionou as pontes que gostaria de lançar sobre as labaredas que atravessa. Falou das mágoas de Fernando Henrique e da amizade com Serra. E de Aécio Neves, quando fala de aliados e, como não consegue parar de pensar e fazer campanha, de 2010.