Título: A escola no divã
Autor: Leite, Larissa
Fonte: Correio Braziliense, 02/11/2010, Brasil, p. 10

EDUCAÇÃO Pesquisa da USP coloca em xeque a capacidade de professores e profissionais da área em lidar com o novo modelo de família, distante da formação tradicional com pai, mãe e filhos. Independentemente da estrutura, porém, participação ainda é fundamental

A educação de uma pessoa envolve inúmeros fatores. E inúmeros atores. Mas são escola e família as duas instituições que têm importância imprescindível na formação do cidadão. Um dos desafios modernos é tentar entender qual é o papel de cada uma na educação do indivíduo. E mais: como deve ser a relação entre educadores e pais, uma vez, segundo especialistas, a escola vive uma crise de sentido e a família vem abandonando a configuração tradicional (pai, mãe e filhos)?

Segundo levantamento recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), baseado na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o tradicional arranjo familiar caiu de 62,8% do total de famílias, em 1992, para 49,9%, no ano passado. A queda do modelo familiar tradicional aconteceu com a ascensão de outros arranjos: no mesmo período, por exemplo, o número de famílias compostas por mãe com filhos aumentou de 12,3% para 15,4%, enquanto as famílias de pais com filhos cresceu de 1,6% para 2%.

Para a pesquisadora Márcia Maria Brandão Santos, no entanto, os trabalhadores em educação ainda não conseguiram absorver o crescimento dos novos arranjos e ainda idealizam a família ideal que seria fundamental para a eficácia do aprendizado do aluno: Os professores ainda têm um discurso cristalizado, que dissemina concepções idealizadas da família, levando-nos a entender que a desestrutura familiar seria o mais forte determinante do fracasso dos alunos. A percepção está presente na dissertação de mestrado Em busca de escolas eficazes: a experiência de duas escolas em um município de São Paulo e as relações escola-família, apresentada em outubro na Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo (USP). O estudo qualitativo foi resultado de entrevistas com diretores e professores de duas escolas urbanas municipais, responsáveis pelo ensino de crianças entre a 1ª e a 4ª série. Márcia Santos, que é supervisora de ensino da Secretaria de Educação de São Paulo, defende o estudo como um retrato da maneira como a escola enxerga a sociedade, resultando em dados indicativos dos modos como a escola tem traduzido e operacionalizado as propostas atuais que pressionam/estimulam os sistemas de ensino a estabelecerem vínculos mais fortes e efetivos com a família.

O aprendizado acontece, independentemente da condição. É o que defende a pesquisadora, a partir do resultado do estudo. Se começarmos a vincular o estudante à estrutura familiar, teremos um indicador interno dizendo que o estudante não aprende por isso ou aquilo. Mas todos aprendem, basta o reconhecimento da família como ela é, afirma Márcia. Segundo a pesquisadora, os professores costumam atribuir o baixo aprendizado do aluno à desestrutura familiar e às baixas condições de renda. Ainda de acordo com Márcia, a escola atual precisa se reinventar e descobrir novos sentidos. Para isso, um dos caminhos seria a apresentação de propostas de ações interventivas com a família para se construir uma vivência de prática.

A pequena Vitória Gabriela Gomes dos Santos Alves, 9 anos, não conhece a vivência do termo arranjo familiar tradicional. Isso porque a vinda de Gabriela não era esperada pelo pai, o vigilante Antônio Alves de Lira, 58 anos, que é casado há mais de 30 anos e tem outros três filhos, com idades que vão de 27 a 35 anos. Eu fiz um teste de DNA para ter certeza que era minha filha. Depois que eu tive, ela virou o xodó. A verdade é que agora tenho mais tempo para cuidar dela do que tive para cuidar dos meus outros filhos, conta. Devido à disponibilidade do pai que trabalha apenas à noite , Gabriela mora com ele e a madrasta há seis anos.

A Gabriela é uma excelente aluna, muito dedicada. Mas isso acontece porque o pai acompanha e participa muito, relata a sua professora, Mara Felícia Rodrigues. Gabriela, por sua vez, não tem do que reclamar: Acho a ajuda do meu pai na escola perfeita.

Teórica e idealmente, a família de Gabriela seria desestruturada e, assim, um potencial motivo para a garota não ter um rendimento satisfatório na escola. A superintendente do Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Maria do Carmo Brant de Carvalho, é enfática no apoio à dissertação e na queda dos estereótipos educacionais: O professor precisa ampliar o repertório linguístico dele. O termo família desestruturada é perverso. Há famílias com diferentes arranjos, o que não quer dizer desestrutura. Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Leão, é simplista afirmar que os professores teriam uma visão idealizada da família, já que eles estão inseridos na sociedade. Cerca de 80% do quadro educacional é composto de mulheres, que já não estão nos lares cuidando dos filhos. Quem cuida da educação entende o que acontece ao seu redor, afirma.

Para Leão, uma queixa entre docentes é a responsabilização, a partir do surgimento de novos arranjos, por uma educação que deveria ocorrer em casa. Já que a família mudou, o estado deveria oferecer políticas públicas para que os estudantes tenham uma educação ideal e integral, estruturas que compensem ausências. Não existe a culpa da família desestruturada, existe a confusão de papéis.

Eficácia à prova

Na pesquisa, foram feitas perguntas abertas sobre 11 fatores relacionados à eficácia escolar. Os fatores são: relacionamento família-escola, organização à aprendizagem, liderança profissional, objetivos e visões compartilhados, ambiente de aprendizado, concentração no ensino e na aprendizagem, ensino com propósitos definidos, altas expectativas, reforço positivo, monitoramento do progresso, direitos e responsabilidades dos alunos. Entre os fatores, criados pelo pesquisador Pam Sammons, a relação entre escola e família foi a que teve mais relevância entre os pesquisados. A tabela foi reproduzida na obra Pesquisa em eficácia escolar: origens e trajetórias (Brooke, N; Soares, J.F), de 2008.

"Cerca de 80% do quadro educacional é composto de mulheres. Quem cuida da educação entende o que acontece ao seu redor

Roberto Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)

Integração

Conheça as iniciativas que têm fortalecido as relações entre escola, família e comunidade.

Agentes comunitários de saúde Visitas domiciliares e circulação na comunidade têm contribuído não só na melhoria da saúde, mas também para aproximar as famílias dos serviços e potencializar sua voz.

Professor comunitário Já utilizado em algumas redes de ensino municipal como, por exemplo, em Sorocaba, Belo Horizonte e Nova Iguaçu.

Coordenadores de pais São moradores do território selecionados e contratados para aproximação da escola com a família.

Defensoria social Atuam em favor do direito da criança à aprendizagem.

Escola de pais Oferta de oficinas de desenvolvimento da fluência comunicativa, canto, música, contadores de história, aprendizagem no uso de tecnologias de comunicação.

Animação comunitária Escola aberta a eventos familiares e comunitários; envolvimento das redes sociais de relacionamento e convivência, além de envolvimento de talentos comunitários.

Fonte: Cenpec