Título: País pode ter até recessão em novo mandato
Autor: Durão, Vera Saavedra
Fonte: Valor Econômico, 28/09/2006, Especial, p. A16

O balanço mais sintético dos quatro anos de governo Lula é o da perda de oportunidade de o país voltar a crescer e ocupar posição de liderança no contexto internacional. Desde os anos 60, o mundo não vivia período tão benéfico e o Brasil ficou na rabeira do crescimento mundial, por falta de um plano estratégico capaz de apontar para o país os caminhos do desenvolvimento. "Por que o país não cresce, por que as empresas não investem? Porque não têm segurança de qual é o rumo escolhido para o Brasil", diz o economista Fernando Cardim, professor do Instituto de Economia (IE), da UFRJ.

Para ele, o desenvolvimento sustentado só virá com planejamento de longo prazo e uma reforma política capaz de recuperar o Executivo e a capacidade de governar num sistema aberto, com um Legislativo democrático e eficaz. "Não se tem no Brasil, desde o regime militar, um sistema político que dê a chance de uma estratégia de governo ser pensada", afirma.

Baixar os juros não é a única receita para o país voltar a crescer, mas ajuda. Crítico feroz da política macroeconômica implementada pelo governo do PT, que considera "desastrosa", o economista atribui boa parte das taxas pífias de crescimento à gestão da política monetária conduzida pelo Banco Central. "O BC alega que a economia está crescendo para tocar sua política contracionista. Sim, nós estamos crescendo junto com o Haiti", diz. Cardim condena também a política cambial e fiscal. E teme pelas exportações, já que o cenário externo está mudando, com riscos de recessão nos EUA.

A incerteza externa, atrelada a um governo que a seu ver se caracterizou pela "inércia" na economia, e pelas alianças políticas espúrias na política, leva-o a não esperar muito de um eventual segundo mandato do PT. "Acho mais provável o governo Lula reproduzir o primeiro mandato. Em grande parte, porque não tem sinalizado qual seria sua visão estratégica para os próximos quatro anos. E estratégia não se improvisa". Pessimista, não crê que Lula tenha um Plano B para os próximos quatro anos, caso seja reeleito, e teme que uma perda de fôlego da economia mundial leve o Brasil a taxas negativas de crescimento, ou até a uma recessão. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: Qual é sua avaliação da condução da política econômica do governo Lula?

Fernando Cardim: O balanço mais sintético dos quatro anos do Lula talvez seja o da perda de oportunidade. O que chama atenção é que esse foi um período excepcionalmente benéfico no cenário internacional. Desde os anos 60 não se tinha período tão bom. Nos anos 70, tivemos os desequilíbrios inflacionários no mundo inteiro, choque de petróleo; nos anos 80, crise da dívida. Nos anos 90, crises financeiras, especialmente na segunda metade da década. O período pós-ataque às torres - de 2002 para frente - é de crescimento mundial, e as únicas crises financeiras importantes são Argentina e Turquia, que tiveram pouco efeito sobre o mundo. Quando se olha para trás, o mais dramático é a sensação de oportunidade perdida, que dificilmente vai se repetir nos próximos anos. O Brasil deixou de aproveitar e perdeu chance única de voltar a ocupar posição de liderança no cenário internacional.

Valor: Apesar disso, o sr. avalia que houve alguns acertos neste governo? Qual foi o principal?

Cardim: Acertos, sempre há. A política externa, reconheço que foi um acerto. A Alca era praticamente uma realidade, quando começou o governo Lula. E teria sido um desastre. Então, na política externa, apesar dos problemas que acabaram restando, como os desacertos com a Bolívia e agora, no FMI, acho que foi bem-sucedida, como, por exemplo, a política de alianças com a Índia e a África do Sul, que tem um potencial importante. Para mim, deter a Alca e as ameaças que se colocavam na OMC foi um grande progresso.

Valor: E no âmbito interno?

Cardim: Na política doméstica, acho que é mais difícil uma avaliação positiva. Acredito que algumas coisas funcionaram por inércia. A política cambial foi um desastre. Como o mundo cresceu muito e pressões chinesas levaram ao aumento de preço de muitas mercadorias exportadas, isso compensou a política cambial, mas seus efeitos vão ser sentidos, aliás, já estão sendo sentidos, e daqui para frente devem piorar se a economia americana entrar em recessão. A política de juros foi de uma insensibilidade até maior do que no período Fernando Henrique Cardoso. A política fiscal foi igualmente muito ruim. Enfim, a política macroeconômica foi desastrosa.

Valor: No plano interno, o sr. não vê nenhum acerto do governo Lula?

Cardim: Eu citaria um acerto possível, ainda que esteja em processo, que foi a recuperação do BNDES . Acho que esta foi uma medida muito importante. O BNDES tinha se tornado um banco de investimento, de privatizações. Um banco, enfim, a caminho da autodissolução.

Valor: Qual o principal equívoco da atual política macroeconômica?

Cardim: O que eu chamaria de principal, porque está um pouco na raiz dos outros dois, é a política de juros. Em grande medida, a política cambial é prejudicada pela política de juros, e a fiscal, também. Grande parte do que nós temos como problema cambial, que é a sobrevalorização do real, se deve ao fato de que as taxas de juros que se pagam aqui, não se pagam em lugar nenhum do mundo. Portanto, há uma pressão à entrada de capitais sempre muito grande. E, no problema fiscal, são os famosos 8% do PIB pagos de serviço da dívida pública e que não se justificam. Não se justifica que a conta tenha este tamanho, porque não é defesa de calote. A grande justificativa é o Banco Central, que trabalha orientado por visões da economia, por parâmetros, que se a gente compara com o resto do mundo, não se justificam. Se existe algo estranho, e que é legitimamente brasileiro, é o Banco Central. Para mim, O BC é o que os conservadores gostam de chamar uma jabuticaba. O BC alega que a economia está crescendo para tocar sua política contracionista. Sim, nós estamos crescendo junto com o Haiti. Os outros todos deslancharam na frente. Havia aquele grupo dos BRICs, que hoje em dia são os RICs. Rússia, India e China correram na frente. E nós estamos aqui, na rabeira, satisfazendo o BC.

Valor: A falta de crescimento continua sendo o grande problema do Brasil?

Cardim: Eu vou talvez destoar um pouco do senso mais comum. Acredito que economia em desenvolvimento, como é o nosso caso, não prescinde de um governo ativo na economia. Falo de um governo que tenha uma estratégia, uma visão de longo prazo, que seja capaz de coordenar a ação de atores privados. Nós não temos muito recursos. Somos um país pobre, subdesenvolvido, então os recursos têm que ser bem usados, seu uso tem que ser estrategicamente bem pesado. Isto certamente era um erro do governo FHC. E é uma preocupação que se mantém no governo Lula, um governo que não tem sido capaz de apontar para lugar nenhum.

Valor: Por essa razão temos uma baixa taxa de investimento?

Cardim: As empresas estão tendo lucros imensos. Por que não investem? Não investem porque não se tem segurança de qual é o caminho escolhido para o Brasil. É imprescindível um governo que saiba para onde vai, para que o Brasil cresça , para que o setor privado tenha um mínimo de confiança e para que os recursos rendam o que podem render.

Valor: O que é necessário para o país ter um plano estratégico para ter resultados melhores na sua busca pelo desenvolvimento?

-------------------------------------------------------------------------------- Se existe algo legitimamente brasileiro, é o BC. O banco é o que conservadores gostam de chamar uma jabuticaba " --------------------------------------------------------------------------------

Cardim: Ai vem uma segunda coisa, e acho que o problema efetivamente não é o governo Lula, mas é a necessidade de uma reforma política. Desde o fim do regime militar, nosso regime político é de paralisia. Criou partidos que têm poder de veto, mas nenhum tem poder de liderança. Você não tem um sistema político que dá a chance de uma estratégia ser pensada. Uma coalizão PSDB-PFL chega lá, não tem maioria e vira balcão de negócios. Se elege-se uma coalizão PT-PC do B, ela tem menos maioria ainda. E vira balcão de negócios. Eu acho que uma reforma política que adote, por exemplo, cláusulas de barreira efetivas já é um primeiro passo. Essas histórias do governo Lula são pavorosas. Mas, no governo do FHC, o primeiro escândalo explodiu com o Sivam, dois meses após a posse. O chefe do cerimonial da Presidência estava vendendo influência a um grupo americano na venda do sistema de segurança da Amazônia e foi punido com uma embaixada na FAO, em Roma.

Valor: Para o sr., então, para o Brasil crescer não basta baixar juros. É preciso ter uma reforma política e um projeto nacional....

Cardim: Se você baixar juros, é bem possível que algumas empresas até se disponham a investir, para compensar a falta de ganhos no mercado financeiro. O problema vai ser, provavelmente, dispersão. Não se tem muitos recursos no país. Provavelmente você vai ter um grau de desperdício, de duplicação, de flutuação, que você poderia prevenir com uma política industrial que aponte prioridades, apoiada na reforma do sistema financeiro, que há muito tempo insisto que seria importante.

Valor: Como seria a reforma financeira?

Cardim: Seriam iniciativas de desenvolvimento de mercado de capitais. O sistema financeiro brasileiro é basicamente o sistema bancário, e a criação de outros mercados é feita a partir de grupos bancários, o que acaba eliminando a possibilidade de competição. Então, por exemplo, o crédito para empresas é muito caro. O que uma empresa americana faz quando o capital de giro é muito caro? Ela vende "commercial papers". Porque, nos EUA, as empresas que se voltavam para o mercado de capitais, eram legalmente forçadas a serem competidoras do sistema bancário. Se reclama muito do spread bancário no Brasil. As nossas políticas de securitização não vão combater isso. A receita americana é criar esquemas de securitização independentes do sistema bancário. Você só quebra o monopólio do sistema bancário com desenvolvimento de instituições paralelas aos bancos e isso não sai do nada. Tem que ter políticas de incentivo. O que promove a concorrência são novas instituições e não novos instrumentos. Esta é, para mim, uma falha na estratégia pensada pelo Ministério da Fazenda para reduzir spreads do sistema financeiro. Existe uma febre inovadora grande, mas o foco sempre está voltado para as mesmas instituições. A pressão para redução do custo dos recursos será muito pequena, enquanto os novos instrumentos forem aportados pelas mesmas instituições.

Valor: Qual modelo pode ajudar mais o país a deslanchar? Um modelo de consumo de massas?

Cardim: Este modelo já opera no Brasil desde os anos 70. Ele em si, não é suficiente. Toda grande economia, como a brasileira, não tem escolhas. O Brasil é assim desde o Plano de Metas. É claro que é um modelo de consumo de massas com grandes diferenciações. Uma economia do tamanho da brasileira é sempre uma economia de consumo de massas. Umas pessoas tomavam esta definição no sentido de uma política que penaliza exportações e favorece o mercado interno. Alguns grupos mais à esquerda sugeriram isto, o que é um erro brutal. A exportação aumenta a renda e permite a produção para as massas dentro do país. Ter um complexo exportador de soja gera empregos que provavelmente não existiriam com a política contracionista que o governo aplica no resto. Há uma tese equivocada, que diz que é preciso escolher entre as duas coisas. Ou exporta ou faz consumo de massas. As duas combinam. Este é o melhor modelo.

Valor: O Bolsa Família ajuda a aumentar o consumo interno?

Cardim: O Bolsa família é importante, mas atende a um segmento de fundo de poço. Do ponto de vista da economia em si, tem efeito positivo em áreas onde o fundo do poço é muito importante. No Nordeste acabou tendo este efeito. Como política econômica, o Bolsa Família não tem grande importância. Como política social, não é muito eficaz no longo prazo. Por outro lado, sempre tenho em mente uma frase que o saudoso Betinho gostava de repetir: "Quem tem fome tem pressa". Então, não jogo pedras no Bolsa Família.

Valor: Como o sr. vê um eventual segundo governo Lula? A condução da economia deve mudar ?

Cardim: O futuro imediato enfrenta duas grandes incertezas. A primeira é externa. Os bons tempos aparentemente estão acabando, mas pelo menos até agora não há nenhuma grande tragédia no horizonte. Claro que a maioria das grandes tragédias chega de repente. Então, isso não quer dizer muita coisa. Há uma incerteza externa que é a recessão americana e que, ao contrário do que se pensa, pode afetar a China, que inunda o mercado americano de produtos.

Valor: E a segunda incerteza?

Cardim: A segunda incerteza é o que significaria um segundo governo Lula. A esta altura, por mais desastres que apareçam, acho que o presidente vai ser reeleito. Mas ninguém sabe o que isso pode significar. Por um lado, acho que o presidente descobriu a virtude da indefinição. De não dizer nada, jamais. São sempre frases muito genéricas, muitas vezes contraditórias. Por outro lado, o último ano de governo tem sido especialmente confuso. Quando começou o governo, sabíamos o que era o governo Lula. O Palocci era a voz dominante, a qual todas as outras se subordinavam no sentido de continuar e aprofundar o modelo econômico herdado do governo FHC. O ministério (dirigido por Palocci) era transparente. Com a mudança no último ano, ficou tudo muito incerto.

Valor: Em que sentido?

Cardim: Parece que o presidente escolheu o ministro Mantega para substituir o Palocci, principalmente pela lealdade pessoal. O presidente foi perdendo todos os assessores, aparentemente traído por todos eles, - e o próprio presidente parece sentir isto, é o discurso dele - e se voltou para alguém cuja maior qualidade é a lealdade pessoal. Mantega é extremamente coerente com isso. Se vê que ele subordina seu posicionamento, e isso não é crítica. Para os cidadãos dessa economia, significa que a própria escolha do Mantega é uma incógnita completa. Ele foi escolhido pela proximidade pessoal e não por eventual divergência com o modelo seguido pelo Palocci.

Valor: Na sua avaliação, Mantega vai continuar, caso Lula seja reeleito?

Cardim: Não se sabe até agora se o ministro Mantega é ministro de transição ou do segundo mandato. Ele está falando como se fosse. Mas o presidente não dá esta indicação. Por um lado, se trouxe o Mantega para o ministério, e lhe deu liberdade para reforçar uma equipe mais desenvolvimentista, Lula publicamente reforçou o papel do presidente do BC, Henrique Meirelles. Ele reforça um lado mais desenvolvimentista e torna praticamente autônomo o remanescente da estratégia mais conservadora.

Valor: O governo poderá abandonar esta trilha e ter uma política econômica mais de esquerda se obtiver um segundo mandato?

Cardim: Acho que o mais provável é o governo Lula reproduzir o primeiro mandato. Em grande parte porque não tem sinalizado qual seria sua visão estratégica e estratégia não se improvisa. No segundo mandato, ele estará herdando a si mesmo e não a "herança maldita" de Fernando Henrique Cardoso. Tenho a impressão de que o governo Lula se conformou com a idéia de que política econômica não é com ele. Tem que ser conservadora mesmo e que o papel de um governo do PT é ser bom para os pobres. Por conta disso, o que eu esperaria de um segundo governo do PT é mais do mesmo. Mais Bolsa Família e mais indecisão no sentido macroeconômico. Mais política monetária permeável às pressões do sistema financeiro, uma política fiscal decorrente disso, continuando com o superávit primário. Não acredito que Lula tenha um plano B na cabeça.

Valor: Mas o pano de fundo internacional não será o mesmo....

Cardim: Por essa razão, temo que o país se encaminhe para uma situação mais difícil. Um governo com pouca iniciativa tentando reproduzir uma inércia que só funcionava quando o contexto internacional era tão bom, que na inércia você vai. Vai menos que os outros, mas não vai tão ruim. Na melhor das hipóteses, vamos continuar crescendo pouco, mas se o resto do mundo perder fôlego, vamos perder também, o que pode significar taxas de crescimento negativas.

Essa foi a última de uma série de entrevistas sobre a economia brasileira nos últimos quatro anos e a perspectiva para o futuro