Título: Novas regras de lavagem de dinheiro e política criminal :: Eduardo Salomão Neto
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/07/2012, Opinião, p. A10

Uma das formas mais simples de não resolver um problema é solucionar outro inócuo em seu lugar. A esse exercício se dedicou a Lei nº 12.683, sancionada em 9 de julho último, que alterou as regras de lavagem de dinheiro no Brasil.

A principal mudança, com impacto em negócios, é a possibilidade de o crime se configurar em relação ao branqueamento de dinheiro proveniente de qualquer crime ou contravenção. A alteração trará discussão sobre a possibilidade de existir lavagem de dinheiro em caso de sonegação fiscal, antes não incluída na lista de crimes antecedentes.

Obrigações administrativas também sofreram alterações. Passam a ter de informar operações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) consultores de operações imobiliárias, societárias ou financeiras e butiques de negócios societários, além de pessoas envolvidas na negociação de atletas ou artistas profissionais ou de bens rurais de alto valor, bem como corretores de imóvel. A descrição é ampla o suficiente para incluir categoria protegidas por obrigação de sigilo, como os advogados.

Eventual subjetividade na tipificação leva ao risco de seu uso para perseguição ou manipulação política

Foram ainda adicionadas a esta lista filiais no exterior de bancos brasileiros com clientes locais. Ficaram de fora, entretanto, as instituições estrangeiras cuja matriz esteja fora do Brasil e atendam a clientes brasileiros no exterior. Diferença de tratamento inusitada, levando em conta o zelo legislativo mostrado pelas adições do parágrafo anterior.

A legislação criou também declaração negativa de inexistência de operações a reportar. Talvez para facilitar acusações criminais contra aqueles que deixarem de reportar o que no entender das autoridades deveria ter sido comunicado, transformando a omissão em falsidade ideológica ou mesmo lavagem de dinheiro.

Para além de tais pormenores, e da legislação cada vez mais severa, muitas vezes o essencial é aquilo que deixa de ser percebido. Entender isso exige uma visita menos convencional à criminologia. Há delitos que provocam prejuízo consciente para particulares ou seus familiares, como homicídio, roubo e fraudes. A esses se contrapõem os que não provocam prejuízo consciente, por ser a vítima o próprio tecido social ou o Estado, ou porque a vítima quer sofrer o prejuízo que o crime provoca, como no caso de tráfico de drogas, favorecimento da prostituição, crimes financeiros e sonegação fiscal.

Os crimes de vítima não complacente têm a característica de, por maior sofrimento que causem, terem limite de expansão. Não é possível roubar ou matar indiscriminadamente sem algum tipo de reação da comunidade, cujo controle tem mais eficiência e vigor do que o do Estado, por estar sempre presente.

Já os crimes sem vítima não se sujeitam a essa lógica. A repressão depende apenas da ação do Estado. Mais ainda, e esse é o caso específico do tráfico de drogas, a ausente pressão social, e a eventual tolerância ou mesmo simpatia da sociedade em relação ao crime, levam a uma repressão indecisa e irregular. Essa é a razão do tratamento leniente que a nossa legislação dá ao usuário de drogas, enquanto pune o traficante, embora ambos sejam parte da mesma lógica.

O resultado é que a segunda ordem de crimes, os de vítima complacente, tende a se fortalecer, e escapar ao controle estatal. Até o ponto em que a repressão eficaz se torna impossível, e tem de ser substituída por outras formas de ação. No caso da lavagem de dinheiro, a resposta foi a criação de mais uma modalidade de crime em que a vítima é complacente: a penalização da aplicação dos proventos desses crimes, na esperança de que o dinheiro da atividade criminosa possa ser mais facilmente detectado e visualizado do que ela própria.

Há problemas nessa escolha.

O primeiro e mais grave é que o crime de lavagem mascara o insucesso de políticas criminais inadequadas, levando à aplicação de penas aos auxiliares financeiros dos criminosos principais, e não aos próprios. Ficam esquecidas medidas diretas de combate aos crimes, como os financeiros, por exemplo, ainda baseados em lei desatualizada e eivada de erros técnicos.

Exemplo dessa ambivalência é que enquanto a lavagem de dinheiro é duramente condenada pela lei, acaba estimulada por normas de geração estatal que permitem a vinda de recursos para o Brasil originários de fundos e de pessoas jurídicas no exterior, com benefícios fiscais. Essas normas não proíbem que brasileiros controlem as entidades investidoras ou que estejam por trás delas.

O fato de a conduta na lavagem ser semelhante a outras socialmente aceitas, até admiradas, como a aplicação lícita de dinheiro, borra a diferença entre conduta aceitável e conduta criminosa. Reside nisso eventual subjetividade sobre o crime de lavagem, e o consequente risco de seu uso para perseguição ou manipulação política, ou como instrumento de corrupção ou farsa.

Isso não significa que não se deva reprimir a conduta daqueles que servem como acessório para crimes mais sérios, aplicando ou escondendo o que o criminoso ganhou com eles. Não só pelo incentivo ao crime que pode daí derivar, mas pela distorção que a infiltração de recursos criminosos na atividade econômica pode provocar.

Entretanto, a parte criminal da legislação contra lavagem poderia ter sido suprida por um aumento de pena para o crime de favorecimento real, previsto no Código Penal. Já as obrigações administrativas de controle e notificação das instituições financeiras poderiam ter sido introduzidas apenas por normatização do Banco Central. O esforço legislativo poupado poderia ser direcionado para mudanças no processo penal brasileiro, que aumentassem sua efetividade e rapidez. De maneira geral, o Brasil tem normas de boa qualidade e rigorosas em todas as áreas. Sua efetividade é ruim por deficiência estrutural de tribunais e teórica do processo penal.

Eduardo Salomão Neto é sócio de Levy & Salomão Advogados, doutor e livre docente em Direito pela USP.