Título: GM seria maior desafio na carreira de Ghosn
Autor: Olmos, Marli
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2006, Empresas, p. B5

Carlos Ghosn é a estrela de rock da indústria automotiva. Kirk Kerkorian acha que o executivo-chefe da Renault-Nissan, um malabarista de múltiplas tarefas que já percorreu meio mundo, é brilhante o suficiente para consertar a General Motors em seu tempo livre. Caso a aliança proposta entre GM e Renault/Nissan não ocorra, Ghosn ainda poderia fechar com a Ford. "Estamos concentrados nas presentes negociações", afirmou Ghosn em seu escritório, no subúrbio parisiense de Boulogne. "Um parceiro americano faria sentido."

À medida que Ghosn e GM se aproximam de outubro, prazo para acertar a aliança ou desistir, todas as atenções centram-se em uma grande dúvida: será que Ghosn merece sua reputação de realizar milagres? Não há dúvidas de que Ghosn obteve um feito notável na Nissan, reanimando a problemática montadora japonesa antes do que qualquer um imaginaria ser possível.

"Uma recuperação na escala (da Nissan) dificilmente foi igualada no capitalismo ocidental e especialmente não o foi entre (diferentes) culturas", diz Piero Morosini, professor de estratégia da escola suíça de administração IMD.

Caso Ghosn consiga um acordo com a GM ou Ford e faça sua mágica funcionar, se juntaria às fileiras de lendas da indústria automotiva, como Alfred Sloan, Lee Iacocca, e Eiji Toyoda. Entretanto, mudar realmente a forma como as montadoras dos Estados Unidos funcionam seria mais complicado do que qualquer outro feito que o executivo tenha conseguido até agora. Algumas das soluções adotadas no Japão seriam difíceis de aplicar nos Estados Unidos. E contratempos recentes colocam em dúvida se a recuperação no Japão tem condições de manter-se.

"Ele jogou o primeiro inning (um dos nove tempos em um jogo de beisebol)", compara James N. Hall, vice-presidente da empresa de projeções AutoPacific, de Tustin, na Califórnia. "Agora, ele precisa proteger o que fez e desenvolver alguns veículos que as pessoas realmente queiram comprar."

Embora Ghosn seja um gênio da recuperação, seu desempenho no longo prazo como executivo operacional não é conclusivo.

Observe-se o recente desempenho da Nissan, onde erigiu sua reputação. Depois da chegada de Ghosn, em 1999, a montadora elevou as vendas nos Estados Unidos em 40% ao longo de cinco anos e chegou a mais de 1,1 milhão de veículos anuais em 2005. Neste ano, contudo, o crescimento parou. Até agosto, as vendas caíram 5% nos Estados Unidos e 13% no Japão. As vendas e a margem de lucro da Renault também recuaram.

O principal motivo para que o desempenho inicial da Nissan nos Estados Unidos tenha perdido força é que a empresa não conseguiu manter participação de mercado, após lançar uma série de veículos, como grandes picapes e utilitários-esportivos. A Nissan entrou nesses segmentos durante o comando de Ghosn e como nunca os havia vendido antes, o crescimento das vendas parecia ótimo. As 85 mil picapes Titan e os 40 mil utilitários-esportivos Armada que a Nissan vende anualmente, no entanto, representam apenas 10% do que a GM vende no setor. E o desenho do maior sucesso da Nissan, o sedã Altima, já estava em grande parte completo quando Ghosn assumiu o cargo. Ele admite que a atual fraqueza decorre do fato de que não manteve o ritmo anterior com novos modelos, mas que o problema foi resolvido. "A seca de produtos da Nissan está chegando ao fim", afirma. "Nunca voltará a ocorrer. Saímos do deserto."

-------------------------------------------------------------------------------- Se houver uma aliança em Detroit, sua lenda certamente terá de passar por um novo escrutínio --------------------------------------------------------------------------------

Também surgiram dúvidas sobre o futuro da empresa porque o executivo-chefe teria muito terreno a ganhar nos Estados Unidos, em termos de participação de mercado. Em sua avidez por revigorar a Nissan, Ghosn instou os funcionários a lançar um desfile de novos veículos em seus primeiros quatro anos. Três deles - a picape Titan, o utilitário-esportivo Armada e a minivan Quest - tinham plataformas e motores novos. Foram fabricados por funcionários inexperientes em uma fábrica nova em Canton, nos Estados Unidos. Até alguns dos fornecedores de autopeças eram novos para a Nissan.

Todas as novas picapes e vans fabricadas em Canton acabaram apresentando defeitos. Os clientes reclamaram de ruídos, das capotas de alguns Armadas, que não estavam soldadas de forma segura e das portas laterais de algumas minivans Quest, que abriam em estradas. A JPMorgan Securities calcula que os custos de garantia por veículo quase triplicaram nos últimos dois anos, para quase US$ 500, e podem subir ainda mais.

Embora a Nissan tenha as melhores margens de lucro no setor, o custo para melhorar a qualidade pode levá-la a perder esse título para a Toyota e Honda. Apesar dos recentes ganhos, a J.D. Power & Associates classifica a qualidade da Nissan como abaixo da média. "Tivemos progressos significativos de qualidade em 2004 e 2005", diz Ghosn. "Gostaríamos de ir mais rápido, mas às vezes para fazer isso é preciso mudar especificações (dos produtos) ou mudar o projeto."

O executivo-chefe também precisa lidar com o complicado cenário que herdou ao assumir o comando da Renault em abril do ano passado. A participação da montadora francesa no mercado europeu caiu de 10,3% em 2005 para 9,1%, neste ano. Marcas de luxo como BMW, Audi e Mercedes arrebataram compradores da Renault com carros pequenos de luxo, com preços abaixo de US$ 30 mil. As tentativas da Renault de contra-atacar com sedãs incrementados não funcionaram. Para voltar ao caminho certo, Ghosn prepara uma série de novos modelos que chegarão às concessionárias a partir do próximo ano. Também almeja agressivamente novos mercados, especialmente asiáticos. Um ponto-chave de seu plano: mudar a carteira de modelos da Renault, agregando veículos com maior margem de lucro.

A concorrência acirrada, a desaceleração no ritmo de lançamentos e o aumento no custo dos materiais minaram as, outrora, altas margens de lucro da Renault, atualmente em 2,7%. Embora a Renault e a Nissan tenham economizado juntas cerca de US$ 600 milhões com o compartilhamento de motores e o desenvolvimento conjunto de carros pequenos e médios, o lucro da montadora francesa neste ano mal chegará ao US$ 1 bilhão, cerca de 30% do número de 2005, segundo o banco de investimentos Morgan Stanley. Mais da metade dos ganhos virá da participação de 44% na Nissan. Ghosn destaca que, ainda assim, a Renault continua rentável.

"Estamos no ponto baixo de nosso ciclo de produtos", diz Ghosn. "Se você é rentável no ponto baixo, estará em boa forma" quando as vendas se recuperarem.

A GM ou a Ford trariam desafios diferentes aos que Ghosn superou no passado. É preciso levar em conta os sindicatos. Quando ele cortou 21 mil empregos em todo o mundo e fechou cinco fábricas no Japão, ele enfrentou protestos públicos. Será mais complicado, entretanto, cortar os US$ 1 mil ou mais por veículo que as montadoras dos Estados Unidos precisam pagar em benefícios de aposentadoria. Ghosn não teria condições de promover esses cortes da mesma forma que levou adiante as demissões no Japão. E depois das várias tentativas fracassadas de sindicalização nas fábricas da Nissan nos Estados Unidos, a animosidade entre a central sindical United Auto Workers (UAW) e Ghosn cresceu.

O dinâmico executivo-chefe promete elevar as vendas e lucros das duas empresas. Se há algo no que ele se sobressai no setor é em cumprir promessas. Ghosn se saiu bem em todas suas metas na Nissan e prometeu renunciar se fracassasse. Agora, Ghosn jura que os lucros da Nissan começarão a subir até dezembro, quando chegarem os novos modelos. Na Renault, onde suas ações para melhorar o desempenho começaram no início do ano, ele tem mais novos modelos que sairão no próximo ano, que podem aproximá-lo de seu objetivo de elevar a margem de lucro para 6%.

Poucos arriscariam apostar contra Ghosn - e por bons motivos. Mas, se houver uma aliança em Detroit, sua lenda certamente terá de passar por um novo escrutínio. (Tradução de Sabino Ahumada)