Título: Nos EUA, o mar não está para pescador
Autor: Pressman, Aaron
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2006, Agronegócios, p. B9

As regras americanas da atividade pesqueira variam conforme local e espécie, e são estabelecidas por oito conselhos regionais onde estão representadas empresas, agências estaduais e federal competentes, cientistas e ambientalistas A atividade pesqueira está naufragando nos Estados Unidos, à medida que a captura de peixes diminui - e que um modo de vida vai deixando de existir. Mas correções de rota baseadas em soluções de mercado poderiam voltar a encher as redes.

Estamos em junho, o dia é de calor inclemente em Kodiak, uma ilha no Alasca, e o capitão Dan Miller atraca o Anna D em um pier de concreto ao lado de uma atacadista de frutos do mar. Os compartimentos de carga de seu pesqueiro contêm 4 toneladas de linguados gigantes recém-apanhados, e esse ex-biólogo está tão contente quanto uma foca curtindo seu banho de sol. Os preços dos linguados estão próximos de um recorde de quase US$ 4 por 450 gramas, e por sua carga Dan Miller receberá, bruto, quase US$ 33 mil.

Cerca de 4 mil milhas a sudeste, Craig Pendleton, 46 anos, um pescador do Maine, passa boa parte do verão em um escritório escuro em Saco, ao sul de Portland, refletindo sobre o futuro do setor pesqueiro. Desde o início de maio, seu barco de 54 pés, o "Susan & Caitlyn", está parado em uma doca em virtude de normas federais que limitam Pendleton a apenas 48 dias no mar. Pendleton provavelmente não zarpará novamente antes de outubro para pescar bacalhau e hadoque no Golfo do Maine.

Mas por que Miller está feliz, quando Pendleton reclama? Em resumo, a resposta está nas "quotas pessoais transferíveis" (QPT).

Miller não precisa se preocupar com a possibilidade de os halibutes - o maior dos linguados -, hoje com bons preços, serem dizimados por outros pescadores. Apenas os que possuem as QPTs estão autorizados a pescar linguados no Golfo do Alasca. Miller tem QPTs que lhe dão o direito de pescar 20 toneladas de halibute. Ele pode usar esses direitos durante oito meses do ano, ou vendê-los a outros pescadores, legá-los a seus herdeiros ou deixar os linguados a que tem direito no mar. Na prática, Miller é "dono" desses peixes.

Hoje, isso vale para os linguados do Alasca. Será que amanhã valerá para o salmão do noroeste do Pacífico ou para outras espécies nos dois litorais americanos? Por mais surpreendente, esse controvertido sistema de livre-mercado de distribuição do direito de propriedades individuais para pescar no mar poderá ser o futuro da pesca comercial americana, hoje em sérias dificuldades. Prejudicada pela pesca excessiva e pela queda do número de peixes capturados - e abalada por importações da Ásia, da Europa e da América Latina -, a antiga prática pesqueira dos EUA já não parece sustentável. O resultado é um crescente apoio a ações do Congresso para impor respeito abrangente às quotas individuais transferíveis, uma política radical que poderá contribuir para devolver a saúde às empresas pesqueiras americanas e torná-las mais competitivas no mercado mundial.

A dimensão do problema é enorme. Mesmo sob regras cada vez mais restritivas, há décadas praticamente não foi modificada a lista de espécies vitimadas por pesca excessiva que podem ser comercialmente inviáveis. Dos estoques de 67 diferentes espécies de peixe esgotados uma década atrás, 64 continuam escassos, apesar de uma lei aprovada no Congresso em 1996, que impôs planos de recomposição dos estoques em dez anos. "Ainda hoje, metade dessas espécies é vítima de pesca excessiva", diz Andrew Rosenberg, professor da Universidade de New Hampshire com uma década no Serviço Nacional de Pesca Marítima (SNPN), que supervisiona o setor pesqueiro. "As vantagens econômicas estimulam driblar as regras".

Os cardumes do bacalhau de Georges Bank não estarão recompostos por pelo menos 20 anos, segundo o SNPN. Outras espécies não recuperarão níveis sustentáveis entre 16 e 70 anos. Apenas neste ano, o SNPN declarou o noroeste do Pacífico zona de desastre para o salmão e de emergência para os groundfish (nome de espécies que habitam águas profundas) da Nova Inglaterra que são os pescados por Pendleton, resultando em forte limitação nas permissões para pesca.

Mas, evidentemente, nem toda a indústria americana tem problemas. A pesca da vieira, uma espécie de fruto do mar, na Nova Inglaterra está em alta. Uma campanha de marketing incentivando o consumo do salmão selvagem do Alasca criou uma demanda por peixes mais caros do rio Copper. E se os novos dispositivos eletrônicos a bordo dos pesqueiros comerciais em Bass Harbor, Estado do Maine, podem servir como indicação, os pescadores de lagostas estão desfrutando uma temporada lucrativa.

Mas à medida que as redes sobem à tona cada vez mais vazias, a ironia, para os pescadores amantes da liberdade, é que a norma regulamentar que a maioria deles até agora aceitou cumprir tenta limitar todas as suas margens de decisão, ditando onde e quando podem pescar e o tamanho das embarcações, redes e equipamentos.

As regras da atividade pesqueira, que variam conforme o local e a espécie, são estabelecidas por oito conselhos regionais onde estão representadas empresas, agências estaduais e federal competentes, cientistas e ambientalistas. As regras são complicadíssimas, e muitos pescadores aproveitam-se das brechas na regulamentação. "O comunismo não morreu", diz o professor Jon Sutinen, da Universidade de Rhode Island. "O planejamento centralizado continua prosperando na gerenciamento de nossa indústria pesqueira".

Trata-se de um caso clássico da "tragédia da área pública", que os livros-texto de economia exemplificam com a pastagem irrefreada em terrenos públicos. Cada criador tenta maximizar as vantagens de deixar seu gado pastando. Assim, sem interesse individual em poupar recursos, o capim da área pública resulta, em última instância, destruído para todos.

O mesmo vale para a atividade pesqueira. Cada pescador tem interesse em pescar o mais rapidamente possível, porque sob as normas em vigor na maioria das áreas costeiras, uma área pesqueira inteira é fechada quando a quota total de pesca é atingida. "Todos tentam maximizar sua captura", afirma Robert Stavins, professor de Harvard e pioneiro na formulação de esquemas econômicos para solucionar problemas similares no controle da poluição do ar. "Não há direitos à propriedade privada", diz ele.

Isso resulta em produtos de pior qualidade e na ecologicamente nefasta prática do descarte da "pesca colateral" - o sacrifício de outros peixes que não aqueles visados pelo pesqueiro e trazidos a bordo acidentalmente. Muitos desses peixes são lançados de volta ao mar mortos ou não sobrevivem. E no afã da pesca, os barcos, coletivamente, freqüentemente extrapolam as quotas. Na Nova Inglaterra, histórico exemplo máximo de fiscalização ineficaz, os limites à pesca do bacalhau permaneceram durante anos ligados a recomendações científicas, e os pescadores ainda as exorbitavam. Em 2001, por exemplo, o total pescado, foi superior a 18 mil toneladas, ou quase três vezes a quota.

A diminuição da captura deixou o setor pesqueiro americano vulnerável a dois furacões econômicos. Melhorias no transporte aéreo permitiram que os varejistas passassem a adquirir peixe fresco em quase qualquer lugar no planeta. Para ficar em apenas um exemplo, a rede Red Lobster, pertencente à Darden Restaurants Inc., compra peixe em 30 países.

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O segundo furacão é a disseminação da piscicultura na Ásia, América Latina e Europa. Essa prática aumentou enormemente a oferta dos mais apreciados frutos do mar, como salmões e camarões. Em 2004, mais de 80% dos frutos do mar consumidos nos EUA foram importados - segundo as estatísticas mais recentes -, em grande parte de piscicultores de camarão da Tailândia, Vietnã e China, e de salmão da Noruega e do Chile. Em 2005, o déficit americano de US$ 8 bilhões no comércio de peixe foi o maior no menu de recursos naturais, depois do petróleo e do gás natural.

Assim, apesar de o consumo de frutos do mar frescos e congelados nos Estados Unidos ter alcançado 5,5 quilos per capita em 2004, ou 20% mais do que uma década antes, os tempos estão muito difíceis para os pescadores americanos: a captura comercial caiu 1% em volume no mesmo período, e 33% em valor (em dólares) ajustado pela inflação. As importações dobraram.

Um aspecto otimista é que a demanda elevou os preços, impedindo o colapso de alguns operadores, mesmo com a queda da oferta e os custos elevados. De 1998 para 2004, o preço do bacalhau no atacado subiu 44%; o halibute aumentou 58%; o atum, 38%. "O preço está mantendo a frota à tona", diz John Our Jr., cujo barco, Miss Fitz, pesca bacalhau ao largo de Chatham, Massachussets. "Se os preços estivessem no mesmo nível de dez anos atrás, estaríamos fritos", afirma.

Apesar disso, por mais sombrias que pareçam as perspectivas, uma grande resposta pode estar nos porões do Anna D. Pelo esquema de quotas individuais transferíveis à Miller, do Alasca, foi alocada uma parcela de 20,4 toneladas do limite total de halibute, ou 24 mil toneladas. Assim, ele pode zarpar praticamente quando quiser, evitando a "fúria pesqueira" e o desperdício incentivado pela pesca apenas em determinados dias. E as QPTs podem ser compradas e vendidas tão facilmente quanto revistas em quadrinhos no eBay. Isso estimula um processo de consolidação entre operadores, melhorando a captura para os que permanecem em atividade. Os direitos de longo prazo também incentivam os pescadores a não pescar em excesso. "Poderíamos ter áreas de pesca sustentável com menos risco", diz Stavins, de Harvard. "Em última instância, os consumidores veriam queda nos preços e maior variedade".

Na década de 80, a Nova Zelândia defrontou-se com uma situação ainda mais sombria do que a da Nova Inglaterra hoje. Mas lá, as QPT permitiram a recomposição de 80% dos estoques de peixes, e a lucratividade está em alta. O mesmo vale para a Islândia e para regiões do Canadá e Austrália.

Nos velhos e maus dias, Kodiak controlava a pesca do halibute de modo bastante parecido, pois a pesca da maioria das espécies é regulamentada em áreas costeiras abaixo do paralelo 48. A saída para a pesca do halibute era limitada a um ou dois dias por ano. Antes do Dia D, recorda Miller, nos portos ouviam-se o barulho incessante de madeira sendo serrada, à medida que as embarcações eram preparadas para a captura dos halibute. Milhares de barcos zarpavam simultaneamente, todos competindo para capturar tanto peixe quanto possível antes que fosse atingida a quota limite. Em 1988, com seus compartimentos de carga e conveses transbordando de peixes, Miller chegou ao extremo de lançar colchões ao mar para encher os beliches com peixes. Praticamente arrastando-se de volta ao porto, ele atracou com seu convés traseiro parcialmente submerso.

Então, depois de esgotado o tempo permitido para a pesca, dezenas de embarcações enfileiravam-se nos píeres das processadoras de frutos do mar. A bordo, todo o halibute que conseguiam carregar. As processadoras não conseguiam dar conta do volume, de modo que os peixes permaneciam em pilhas congeladas de 6 metros de altura. Semanas eram necessárias para processar o acúmulo. Mal processados e já não tão frescos, os halibutes rendiam apenas aproximadamente US$ 2,20 por quilo.

As condições inseguras e o desperdício pressionaram o Conselho de Gerenciamento Pesqueiro do Pacífico Norte, do Alasca, a buscar uma solução. Em 1995, o Conselho implantou as QPTs. O novo sistema, adaptado de concepções de economistas defensores do livre mercado, foi controvertido. As quotas de pesca, distribuídas com base na captura de peixes em anos anteriores, podiam ser compradas e vendidas. Quem não havia pescado durante os anos tomados como referência, e até mesmo membros da tripulação de pesqueiros de linguados, ficaram sem nada.

Ressentimentos ainda perduram, mas a partir de então os números vêm surpreendendo. De acordo com as estatísticas mais recentes, os pescadores do Alasca apanharam cerca de 35 mil toneladas de halibute em 2004, com receita equivalente de US$ 169 milhões, contra 26 mil toneladas, ou US$ 85 milhões, registrados apenas dez anos antes. Neste ano, a captura poderá ultrapassar a marca de US$ 200 milhões.

Quando o programa no Alasca começou, em 1995, foi destinada a Miller uma quota baseada em seu histórico pesqueiro. Ele então comprou mais QPTs, por aproximadamente US$ 9 por libra-peso. Foi um investimento magnífico. As quotas estão sendo comercializadas atualmente por até US$ 22 por 450 gramas. E o preço do peixe de alta qualidade que Miller pesca triplicou.

Diferentemente de outros setores consolidados que exploram recursos naturais, como a atividade petrolífera, a maior parte da pesca continua entregue a embarcações operadas por seus próprios donos. Não há nenhuma operadora pesqueira gigante, apenas inúmeros pequenos empreendedores. A Tyson Foods descobriu quão incertos podem ser os lucros quando se opera sob as regras antiquadas, durante uma desastrosa incursão de sete anos no setor pesqueiro, resultando em baixas contábeis superiores a US$ 200 milhões. A Tyson Foods acreditava que quotas individuais seriam em larga medida reintroduzidas em 1992, mas não contou com o vigor da resistência. "Estão distribuindo um recurso público", afirma Shawn Dochtermann, um pescador de Kodiak que discorda do esquema. "Se nossos antepassados ainda estivessem vivos, muita gente seria enforcada por isso", diz ele.

Pescadores radicados na Nova Inglaterra como Pendleton também continuam contra o sistema de quotas, receando uma consolidação rápida, se grandes companhias como a Tyson puderem comprar quotas. De acordo com Pendleton, elas reduziriam o tamanho das frotas, causariam o colapso de cidades que vivem da pesca e transformariam pescadores proprietários-operadores em empregados com pouco poder decisório.

Isso pode não ser vã especulação. Em março passado, Pendleton foi à Nova Zelândia e voltou ainda não convencido. Um pequeno número de companhias detém mais de 70% dos direitos de pesca no país. "Trata-se de um modelo exclusivamente econômico, desprovido de quaisquer considerações sociais", diz ele. "Eu não vejo como isso pode funcionar para as comunidades pesqueiras da Nova Inglaterra".

Mas há maneiras de respeitar as preocupações de Pendleton. No Alasca, por exemplo, as comunidades podem comprar QPTs e alugá-las a pescadores locais, preservando, assim, sua cultura. Uma avaliação, pelo Congresso americano, de todos esses programas, também recomendou limites para o número de quotas que qualquer pessoa ou companhia poderia acumular.

Cada vez mais, antagonistas como Russell Underwood, que pesca em Panama City, Flórida, estão começando a ceder. Em outubro passado, poucos dias depois do impacto do furacão Rita, Underwood achou que não tinha alternativa a levantar âncora em um mar agitado e cheio de destroços. Como a temporada de pesca no Golfo do México é aberta apenas dez dias por mês em 2005, diz Underwood, "haja furacões ou seja o aniversário da patroa, a gente tem que ir". Seu barco sofreu uma pane, e ele foi socorrido por operários de uma plataforma petrolífera. Até mesmo Pendleton diz: "Lá nas docas, tenho ouvido muita gente dizendo: 'Pague minha quota e fique com o negócio'". (Tradução de Sergio Blum)