Título: Mantega acena com queda de impostos
Autor: Safatle, Claudia e Galvão, Arnaldo
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2006, Especial, p. A22

Há seis meses no cargo, tão logo assumiu a pasta do Ministério da Fazenda, Guido Mantega tomou uma decisão estratégica: atuar mais no mercado cambial para reduzir a volatilidade da taxa de câmbio. "Temos que continuar comprando reservas. Ela está em US$ 73,6 bilhões e podemos ter mais. Na medida em que os juros caem, reduz-se o custo de carregamento das reservas cambiais", disse o ministro ao Valor.

A aposta de Mantega é de que Luiz Inácio Lula da Silva será reeleito presidente da República para o período 2007-2010 - "se não for no primeiro, será no segundo turno" - e nesse eventual segundo mandato a política econômica do governo entrará numa segunda fase. No primeiro mandato as necessidades eram fortalecer os fundamentos, ganhar a confiança dos mercados, iniciar um processo de crescimento e equacionar os problemas sociais mais urgentes.

Agora que "o Brasil está cada vez mais entrosado na globalização", tem novos desafios e necessidades, diz Mantega. Com a taxa de câmbio a R$ 3,0, era até possível ter uma carga tributária maior e não prejudicar as empresas. Isso mudou. A resposta que o país tem que dar, salientou o ministro, é com o aumento da competitividade, seja através da redução importante dos impostos e dos juros, seja na melhoria da infra-estrutura.

Simultaneamente, é preciso investir mais em inovação, tecnologia e na internacionalização de empresas brasileiras e reduzir os custos "institucionais", como ele chama os entraves do Judiciário e ambientais aos investimentos. É preciso, diz ele, mudar a legislação para definir melhor as competências do Ibama, do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União. A seguir, a íntegra da entrevista:

Valor: Em que as forças políticas que emergem desta eleição convergem com as propostas do eventual segundo mandato do presidente Lula? Vai ser necessário um entendimento?

Guido Mantega: Vamos continuar com duas forças políticas principais. Serão o governo e seus aliados mais próximos, PT e PMDB, e, do lado da oposição, o PSDB e o PFL como força auxiliar. O eixo governista e a força majoritária da oposição têm projetos relativamente similares, pelo menos nas intenções. Principalmente, levando em consideração as novas lideranças que poderão se firmar a partir dessas eleições.

Valor: Na macroeconomia parece haver convergência, não?

Mantega: Depende de quem for eleito. As principais lideranças, Aécio Neves, em Minas, e José Serra, em São Paulo, se eleitos, tornam-se as principais lideranças do PSDB. Atualmente, o PSDB está dividido. Há o segmento mais conservador do partido, representado pelo Geraldo Alckmin. É a turma do interior, do Opus Dei, mais atrasada. Vejo que, com o lado do Serra, há sintonia ou proximidade de projetos de desenvolvimento. É diferente do Fernando Henrique, que compôs com as forças mais ortodoxas e conservadoras. Francamente, não vejo grande dificuldade de compor uma coalizão de governo e acordos com a oposição que garantam a governabilidade.

Valor: Mesmo com esse final sangrento na campanha?

Mantega: Final sangrento sempre há. Eleição é um momento de tensão, de estresse máximo. Às vezes o termômetro indica uma temperatura mais alta, mas, terminado o processo eleitoral, você passa a ter uma nova disposição das forças políticas porque os interesses são outros. Quais os interesses dos novos governadores? Eles querem fazer um bom governo. Não vão ficar na retórica antigovernista no plano federal, porque um precisa do outro. Não havendo eleições no curto prazo, os interesses, sob certos aspectos, são convergentes.

Valor: O item número um da agenda é crescer, crescer e crescer?

Mantega: O ponto número um é o desenvolvimento sustentável, vigoroso, acelerado.

Valor: Como chegar lá? O sr. é ministro da Fazenda há seis meses. Algo mudou na sua visão em relação à macroeconomia?

Mantega: A estratégia para o desenvolvimento é a mesma que tinha. O que muda é a fase em que nos encontramos. Nitidamente, mudamos de fase. Se colocam novas prioridades e necessidades.

Valor: Quais?

Mantega: No primeiro mandato as necessidades eram fortalecer os fundamentos, mudar a cultura inflacionária do país, ganhar a confiança dos mercados, iniciar um processo de crescimento, equacionar os problemas sociais etc. Essa primeira fase foi cumprida a contento. Já podemos olhar para a segunda fase, que tem outras variáveis em jogo.

Valor: Quais são essas variáveis?

Mantega: Em primeiro lugar, o Brasil está cada vez mais entrosado na globalização. Temos novos desafios e necessidades. Isso não apareceu tanto no primeiro mandato porque o câmbio era favorável. Todos os setores econômicos puderam crescer à sombra de um câmbio favorável. À medida em que o Brasil foi se consolidando na área externa e nos fundamentos, tornando-se um país mais seguro, perdemos essa vantagem e isso nos coloca diante de novas exigências para dar continuidade ao processo. Com o câmbio a R$ 3,0 você podia ter uma carga tributária maior e não chegava a prejudicar as empresas. Com um câmbio a R$ 2,80 você podia ter um custo financeiro maior e menos produtividade. Alguns setores têm uma defasagem cambial que indica necessidade de compensá-la com produtividade. Em outros, há um tombo, porque tinham uma taxa artificial. Mas devemos olhar a economia brasileira como um todo.

Valor: Então, no conjunto, não é grande a defasagem cambial?

Mantega: Não. Mas para bens de capital há alguma defasagem. A pior situação é a de bens de consumo, que está há mais tempo assim.

Valor: Com o Brasil inserido no mundo, o que tem de ser feito? Reduzir impostos?

Mantega: No desafio da globalização, fomos bem sucedidos nas contas externas e isso nos levou a uma inevitável apreciação cambial. Também houve um acirramento da concorrência internacional e até da competição desleal. Isso leva à necessidade do aumento da competitividade em tributos, juros e infra-estrutura. Paralelamente, é preciso investir mais em inovação, tecnologia e na internacionalização de empresas brasileiras. Olhando tudo isso, uma parte já começa e outra tem de ser feita no segundo mandato.

Valor: Um empresário disse ter ouvido do presidente Lula que a primeira medida em 2007, caso reeleito, seria cortar os impostos em 10%. É isso mesmo?

Mantega: Não é exatamente assim. Entre os desafios do próximo governo está acelerar o crescimento do PIB para mais de 5%, reduzir as desigualdades sociais e melhorar a inserção internacional do Brasil. Nos instrumentos para consolidar esse novo ciclo de desenvolvimento estão, em primeiro lugar, garantir os fundamentos macroeconômicos. Não vamos perder aquilo que foi conquistado: baixa inflação, equilíbrio fiscal e redução da vulnerabilidade externa. Vamos trabalhar para ampliar os investimentos, aumentando o crédito e reduzindo o custo financeiro. Essa equação é simples. Pegando o câmbio, temos de melhorar os outros custos, que são o financeiro, o tributário e o da infra-estrutura. Há também o custo institucional a partir da burocracia, do Judiciário e dos entraves ambientais. Acabamos de baixar a TJLP.

Valor: Há custo fiscal no corte da TJLP...

Mantega: Você tem de apostar no crescimento. A arrecadação tem de crescer por meio do crescimento econômico e não pelo aumento da carga ou de ganhos de tesouraria. Essa é a nova filosofia a ser implantada do ponto de vista tributário. Reduziremos tributos que estimulem o volume produzido. No fim das contas, a arrecadação será maior.

Valor: Então aquele empresário não está tão equivocado. Alguma promessa o presidente Lula fez.

Mantega: Não está equivocado. Uma reforma tributária que signifique racionalização e redução da carga está nos planos do governo. Vamos aprimorar a qualidade da política fiscal. Os processos de aumento do crédito e redução do custo financeiro já estão em andamento. Com a inflação controlada, a política monetária será mais flexível naturalmente.

Valor: O governo pode reduzir a meta de inflação?

Mantega: Não pretendemos isso. É melhor deixar uma meta flexível para garantir o crescimento e trabalhar com uma política monetária mais flexível. Num primeiro momento, como a estratégia de combate à inflação está muito bem sucedida, corremos o risco de uma queda da inflação mais rápida que a dos juros. Momentaneamente, não temos uma queda real dos juros. Em algum instante as curvas se cruzam e a velocidade de redução do custo financeiro será maior que a queda da inflação.

Valor: Há risco de a inflação este ano ficar abaixo do piso de 2,5% ?

Mantega: Aí, teríamos de interpelar o Copom, porque ele estaria descumprindo a meta.

Valor: Os próximos anos serão de mais do mesmo na macroeconomia ou é hora de ousar?

Mantega: Não é mais do mesmo. É uma segunda fase. Não precisamos mais ser conservadores na taxa de juros, por exemplo, porque a inflação está sob controle e até a memória inflacionária está sendo eliminada.

Valor: Então está tudo pronto para o governo ousar?

Mantega: É isso. Temos todo o cenário para ousarmos mais em condições seguras.

Valor: Isso significa que já seria hora de desarmar os compulsórios?

Mantega: Aí você já colocou o carro à frente dos bois. Em algum momento chegará a vez de descomprimirmos os compulsórios, que fazem parte da anomalia dos tempos da inflação. Vamos precisar de juros cada vez menores.

-------------------------------------------------------------------------------- A próxima tarefa da minha agenda é a reforma tributária com desoneração. Essa é uma prioridade" --------------------------------------------------------------------------------

Valor: Isso significa chegar a 5% ou 6% de juros reais em dois ou três anos?

Mantega: Tinha dito que em algum momento do segundo mandato a taxa de juros real vai chegar a 5%. Não falei quando. Não dá para adivinhar. Mas as condições são amplamente favoráveis para que isso aconteça.

Valor: A combinação mais delicada que há pela frente é a da política fiscal pautada pela redução do gasto corrente e a reforma tributária. Como isso pode ser feito?

Mantega: No aspecto tributário, precisamos fazer duas coisas. Em primeiro lugar, uma racionalização. Uma reforma mais modesta é a que está no Congresso, sobre o ICMS. Uma reforma tributária mais ambiciosa pode chegar no Imposto sobre Valor Agregado (IVA), com nota fiscal eletrônica etc. Se isso será feito em duas etapas, dependerá das negociações no Congresso. Temos de eliminar esse emaranhado de tributos estaduais, que inibe o investimento, atrapalha o produtor, dificulta o trânsito de mercadorias e mantém a guerra fiscal. Essa é uma prioridade do segundo mandato. Junto com isso, vamos caminhar para uma redução tributária em várias frentes. Não vou falar quais, porque atrapalha a produção. Também podemos olhar para a Cofins. Vamos fazer um plano de desoneração tributária compatível com o aumento da produção nos setores dinâmicos. Foi feita uma desoneração no segmento da informática e está dando muito certo. É um setor que está crescendo. O que se chama TI, tecnologia da informação, passou a existir no Brasil.

Valor: Há a possibilidade de uma desoneração linear?

Mantega: Acredito que não. Isso tem menos eficácia do que mirar em determinados setores. Por exemplo: bens de capital para a indústria do etanol, setores que foram mais onerados com a mudança da Cofins, novos setores de serviços etc. O que queremos é aumentar o investimento, fazendo com que os setores mais dinâmicos puxem o crescimento. Não dá para beneficiar todo mundo.

Valor: Há alguma possibilidade de reduzir a alíquota da CPMF?

Mantega: Essa questão ainda vai ser amadurecida.

Valor: Há uma proposta tributária pronta para ser anunciada se Lula for reeleito?

Mantega: Vai ter. A próxima tarefa da minha agenda é a reforma tributária com desoneração. Vou trabalhar nisso nos próximos meses. A outra face é a redução do gasto corrente. Em que percentual ainda não sei. A Lei de Diretrizes Orçamentárias trazia a proposta de reduzir as despesas correntes em 0,1 ponto percentual do PIB ao ano. Para mim, está claro que dá para fazer uma proposição para os próximos anos.

Valor: Valendo a partir de 2007?

Mantega: Não sei. Para 2007, teria de ser espontâneo. Em 2008, baseada na lei. Vamos ter de achar gasto que possa ser reduzido. Agora, fechadas as urnas, vamos nos debruçar sobre os orçamentos de 2006 e 2007. Vamos fazer um plano de qualidade do gasto.

Valor: O que isso significa na prática?

Mantega: Atualmente, o governo gasta R$ 45 bilhões em saúde. Será que eles estão sendo bem gastos? O resultado deles é eficiente? Gastamos R$ 18 bilhões em educação. Acho que esses R$ 18 bilhões podem ser melhor gastos. Não é diminuir o gasto, mas fazer com que eles rendam mais.

Valor: O sr. proporia o aumento da desvinculação das receitas da União (DRU), que deve ser renovada após 2007?

Mantega: Não necessariamente, mas não descarto. Minha tendência é não diminuir a DRU e nem a CPMF.

Valor: Quando o sr. assumiu, declarou que não tinha convicção de que era necessária uma nova reforma da Previdência. E hoje?

Mantega: Continuo sem convicção.

Valor: Mesmo com um déficit anual na casa dos R$ 40 bilhões?

Mantega: Déficit de R$ 40 bilhões é muito, mas é administrável nas contas públicas. A questão da Previdência tem de ser revista a cada período, porque as condições vão mudando. É preciso ver os novos contribuintes que entram mercado, o envelhecimento da população. Não dá para fechar questão.

Valor: Esse assunto está na sua lista de prioridades?

Mantega: Não está na minha lista de prioridades. Mesmo porque está aumentando a população que contribui. Com crescimento e formalização da economia, pode-se não ter que fazer mudanças. Na minha agenda de prioridades não há reforma da Previdência, mas há uma reforma do Estado para mudar regras e procedimentos.

Valor: E a reforma orçamentária, da lei, da rigidez do gasto?

Mantega: Vamos examinar isso mais adiante.

Valor: Mas isso é um problema que o sr. vem examinando desde que assumiu o Planejamento, em 2003.

Mantega: São questões que tem que ser reexaminadas permanentemente.

Valor: Com esse conjunto de propostas o país cresce?

Mantega: Se não crescer não funciona. A pior coisa que se pode ter é uma reforma tributária para reduzir os impostos com a economia sem crescer. Aí você afunda! Isso só poderá funcionar com a economia crescendo mais, para que possa haver compensação entre a diminuição de alíquotas com aumento da base da arrecadação. Há coisas engatilhadas, como a reforma da lei das licitações (a lei nº 8.666). Outras estamos aprendendo, como o quanto as lei do meio ambiente atrapalham a realização de certos projetos. É uma legislação falha porque coloca conflitos de competências de ordem nacional, regional, Executivo com Judiciário, Ministério Público versus Ibama. Isso tem que ser reformulado, é preciso fazer uma nova legislação para definir as competências. As instâncias se atravessam e atrasam infinitamente a implantação de projetos.

Valor: Da sua lista de prioridades consta a ampliação e redução de custos da infra-estrutura. O que é essa redução de custo?

Mantega: Por exemplo, pelas condições que temos no país, poderíamos ter energia mais barata. Tem muito tributo sobre a energia. Temos de olhar onde fazer e há áreas que teremos de fazer um pacto federativo, porque pesam impostos estaduais. Também temos de mudar a gestão dos portos.

Valor: O sr. é a favor de privatizar as Docas?

Mantega: Não é a única alternativa. Vamos melhorar as gestão.

Valor: Em que medida uma eventual recessão americana preocupa?

Mantega: Ouço falar em crise na economia americana há vários anos e ela não acontece. O que vejo no cenário internacional é a possibilidade de alguma desaceleração. Em vez de crescer 4,5%, cresce 3%. Também vejo aceleração das economias européia e japonesa. No balanço, poderemos ter uma pequena desaceleração da economia mundial que pode nos afetar diminuindo o preço de algumas commodities, mas, em compensação, temos o crescimento do mercado interno. É assim que tem de ser. Não vejo grandes desequilíbrios. O Brasil está muito mais preparado para oscilações internacionais. Diga-se de passagem, nós, nesses últimos seis meses, demos mais estabilidade para o câmbio.

Valor: Por quê?

Mantega: Reduziu-se a volatilidade porque nós estamos atuando mais no câmbio.

Valor: Essa foi uma decisão estratégica?

Mantega: Sim. Tem de continuar comprando reservas. Ela está em US$ 73,65 bilhões e podemos ter mais. Na medida em que os juros caem, reduz-se o custo de carregamento das reservas.