Título: Lula ou Chávez, quem é o líder da América Latina?
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2006, Política, p. A9

Quatro anos atrás, quando eleito presidente do Brasil numa vitória esmagadora, Luiz Inácio Lula da Silva parecia destinado a tornar-se porta-voz de uma América Latina nova, mais confiante e socialmente mais justa. O Brasil, a quarta maior democracia do mundo, tem aspirações legítimas de se tornar uma liderança regional e de assumir um papel mais destacado no mundo. E a própria história de Lula - sétimo filho de uma família paupérrima do atrasado Nordeste brasileiro, que se tornou líder sindical - autorizava-o a assumir a liderança moral de uma nova e democrática esquerda latino-americana, uma esquerda que parecia ter cortado as antigas amarras a uma concepção de Estado todo-poderoso.

Quatro anos depois, é praticante certo que Lula venha a conquistar um segundo mandato, seja na eleição geral deste domingo ou num segundo turno. Infelizmente, porém, ele perdeu um pouco de seu antigo brilho.

Lula não é a voz mais forte na América Latina, nem mesmo de sua esquerda. A voz dominante é a de Hugo Chávez, o populista presidente da Venezuela.

Em 20 de setembro, em discurso perante a Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), Chávez suplantou até mesmo o iraniano Mahmoud Ahmadinejad no ruidoso tom adolescente de seu antiamericanismo, referindo-se a presidente americano, George W. Bush, como "o diabo".

Falar alto não é, necessariamente, um comportamento persuasivo. Mas Chávez é um comunicador esperto que traz os bolsos repletos de dinheiro do petróleo. Ele foi financeiramente magnânimo para com um leque de países - da Argentina à África -, e espera que isso assegure à Venezuela uma das duas cadeiras rotativas reservados à América Latina no Conselho de Segurança da ONU. Para isso, ele conseguiu o apoio adicional da Rússia e da China, bem como o de um punhado de ditadores - de Belarus à Coréia do Norte.

As democracias latino-americanas têm reclamações justificadas contra Bush e os EUA. Mas é difícil ver como seus interesses serão efetivamente representados por Chávez, um autocrata eleito caracterizado pelo hábito de tentar esfacelar qualquer grupo que não ele não seja capaz de controlar. É realmente estranho que a candidatura da Venezuela à ONU tenha o apoio do Brasil. Lula, assim, está ajudando a assegurar uma plataforma mundial a seu principal contendor pela liderança na América do Sul.

A visão de Lula é que a melhor maneira de conter Chávez é inclui-lo - por exemplo, no Mercosul. Isso parece atender os interesses de curtíssimo prazo de Lula: satisfazer a esquerda de seu partido, que discorda das políticas econômicas do presidente. E qual é a reação de Chávez? Ajudar a humilhar o Brasil na Bolívia, onde os ativos da Petrobras nos setores de petróleo e gás correm o risco de estatização, e empenhar-se em comprometer os princípios democráticos e de livre mercado com base nos quais o Brasil fundou o Mercosul.

À parte a ingenuidade da política externa de Lula em relação à América do Sul, há duas razões mais graves pelas quais o presidente brasileiro perdeu seu brilho. Uma delas é que durante seu mandato aconteceu o pior agravamento da corrupção política no Brasil. No ano passado, tornou-se público que diversos de seus assessores mais próximos orquestraram um esquema sob o qual um grande número de legisladores de partidos aliados recebiam dinheiro em troca de seus votos no Congresso. Neste mês, estourou em um novo escândalo: membros da campanha de Lula demitiram-se depois de negociar o pagamento e a publicação de documentos comprometendo adversários, ao vinculá-los a um outro esquema de corrupção. E para completar, Antonio Palocci, eficaz ministro das Finanças de Lula durante boa parte de seu primeiro mandato - e possivelmente o futuro líder do partido de Lula no Congresso -, poderá ser indiciado por envolvimento em um terceiro escândalo.

A economia é motivo para outra frustração. Sensatamente, Lula e Palocci ficaram distantes de qualquer moratória da dívida externa e mantiveram políticas macroeconômicas responsáveis. Mas a economia brasileira avançou muito pouco, tendo crescido a uma média de apenas 2,8% ao ano sob Lula. Foi o crescimento excessivo da receita tributária - e não uma política mais inteligente de gastos -, que manteve as contas fiscais sob controle. Investimentos do setor privado são limitados devido a complicações burocráticas, infra-estrutura insatisfatória e incertezas quanto aos marcos regulatórios, bem como pela prejudicial carga tributária sobre as empresas.

Por tudo isso, então, é ainda mais extraordinário que Lula esteja a caminho de um segundo mandato que, sob diversos ângulos, parece não merecido. Já é antiga a conclusão da maioria dos brasileiros, de que os políticos do país são irremediavelmente corruptos. Mas muitos brasileiros identificam-se com Lula e não acreditam que ele tenha se beneficiado pessoalmente das propinas. Acima de tudo, o segredo do êxito eleitoral de Lula é que ele cumpriu sua promessa de ajudar os brasileiros mais pobres.

Graças a um bem-sucedido programa contra a pobreza (que faz chegar pequenos pagamentos a 11 milhões de famílias), à inflação baixa, ao maior acesso a educação e a grandes aumentos no salário mínimo, a renda dos pobres está subindo muito mais que a da classe média. O resultado é que, num país de má reputação por suas desigualdades, a renda está hoje mais bem distribuída do que em qualquer momento nos últimos 30 anos.

Alguns dos sucessos de Lula devem muito a seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (assim como o mau hábito de tributar e gastar). O modo como o Brasil está ajudando os pobres parece mais eficaz, sustentável e democrático do que os de Chávez, que recorre aos rios de dinheiro do petróleo e depende de assessores cubanos. Mas um progresso continuado exigirá políticas distintas, como Lula às vezes parece reconhecer.

Num segundo mandato, ele precisaria envolver-se em um esforço concertado para tirar o Brasil de sua armadilha de baixo crescimento. Isso exigirá cortes nos impostos e na burocracia federal, e redução de gastos perdulários do governo - bem como reformas no sistema previdenciário, nas agências reguladoras, no sistema educacional e no mercado de trabalho. E isso será difícil. O próprio partido de Lula resiste a tais medidas, e ele poderá ficar ainda mais à mercê do apetite voraz por dinheiro público da parte de seus aliados no Congresso. Para aprovar as reformas necessárias, ele poderá precisar apelar à oposição.

O Brasil é freqüentemente citado, juntamente com a China, a Índia e a Rússia, como sendo uma das potências econômicas emergentes. No que se refere a crescimento econômico, a citação é puro confete. Ela é também enganosa: o Brasil viveu um surto de crescimento nos anos 50 e 70, e é atualmente um país de renda média, no qual é mais difícil sustentar um crescimento rápido.

Se a economia brasileira estivesse crescendo a 5% ou 6% ao ano, a reivindicação do Brasil à liderança regional teria maior peso. E se Lula desse vários passos sérios no sentido de promover uma limpeza na cena política brasileira - empenhando-se na aprovação de sistemas partidários e eleitorais nos quais houvesse maior cobrança de responsabilidades e maior transparência - ele começaria a resgatar seu próprio direito à liderança moral da esquerda na região. Isso é algo beneficiaria tanto o Brasil como a América Latina.

(Tradução de Sergio Blum)