Título: Quem venceu as eleições?
Autor: Santos, Wanderley Guilherme dos
Fonte: Valor Econômico, 02/10/2006, Política, p. A3

Ou muito me engano ou a ética política ganhou as eleições. Apesar dos pesares, o patológico histrionismo parlamentar do último ano e meio não foi um desperdício total. Em parte porque alguns dos mais exagerados caronas da indignação pública terão a derrota como merecida resposta eleitoral. Na melhor parte porque a vida política não poderá dispensar, daqui para frente, o bom udenismo, o udenismo constitucional, moralista, mas antigolpista. O udenismo clássico sempre teve dificuldade em separar a legítima exigência de lisura na administração pública da reacionária tese de que, para instaurá-la, valia tudo. Sem falar nos pecados menores da prática de leviana distribuição de calúnias e da soberba de não olhar o próprio rabo. Um pedaço do PSDB herdou a UDN podre, abundante em vitupérios e presunção, assim como o PT das sombras incorporou a promiscuidade sindicalista do velho PTB. É bastante provável que bom número de podres e promíscuos sejam exorcizados, para benefício geral do país.

Há de melhorar, desde logo, a linguagem do conflito. Pelas últimas explosões chega a assustar o que seriam capazes de dizer as pessoas cultas, por exemplo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, se tivessem somente a escolaridade do presidente Luiz Inácio. É impossível evitar a impressão de que a vulgaridade retórica oposicionista, ultrapassando o limite do desrespeitoso, não seja fruto do sentimento de que bacharéis podem dizer o que bem entendem a ex-metalúrgicos. Têm as costas quentes pela cultura e posição social. Duvido que os bocas sujas se referissem com tanta descompostura a JK ou Getúlio Vargas. Jamais o fizeram. E, claro, sempre foram educadamente cordatos com as figuras dos presidentes militares e suas esposas. Hobbes tem uma reflexão muito interessante sobre a covardia humana, mas fica para outra oportunidade.

Sem uma linguagem comum fica difícil a negociação política e à minoria, exceto se clandestina ou provocadora, cabe decisivo papel na autenticação democrática dos governos. Ela está obrigada a negociar sob pena de trair a parcela oposicionista da população que continua, em qualquer caso, titular dos mesmos direitos de representação da maioria. A qualidade da vida pública depende tanto dos que administram diretamente o Estado quanto dos que são candidatos a substituí-los, quando o eleitorado assim decidir. Impedir o governo de governar é próprio de sublevados. Aos derrotados, se democratas, resta aceitar os termos da derrota e comportarem-se de acordo com o decoro parlamentar. Algo que faltou recentemente à ilustre elite oposicionista.

A oposição ganhou uma batalha e seria lamentável que estragasse seus frutos. Impôs a discussão ética no cotidiano da política. Deixa de ser relevante, pelo valor do troféu, que não viva propriamente em monastérios, ou que seus oficiantes tenham filhos bastardos ou curtam embalos de sábado à noite. Mas deve abster-se de radicalismos religiosos, aos quais, de resto, não tem direito hereditário. Nem ganhou sozinha a batalha para reivindicar monopólio na distribuição dos louros.

Contou a oposição política com a estratégica colaboração do jornalismo investigativo padrão OBAN. É importante distinguir com muita serenidade e precisão a atividade jornalística vocacional, a que não sossega enquanto não apura o último vestígio de um assunto de interesse público, por mais doloroso e chocante, da atraente vertigem do mundo cão, que transforma morte natural em homicídio doloso, se possível em parricídio. Amanhã será outro dia e os desmentidos não colam. Danem-se os parentes. O jornalismo padrão OBAN ainda é pior do que isso, ele provoca a morte natural para poder noticiar o parricídio.

O jornalismo-OBAN noticiou parricídios sem conta no último ano e meio. Manteve a população em estado de sítio psicológico como só são capazes os mais competentes torturadores terroristas. Contaminou o jornalismo político investigativo de boa qualidade e o expulsou como a má moeda expulsa a boa. O mercado foi tomado por moedas podres sob pretexto de que a responsabilidade cabia exclusivamente às caixas emissoras. Falso. Há exemplos históricos de como esse processo se dá e os estudiosos da história da imprensa podem recuperá-los pesquisando o deliberadamente sujo papel dos grandes jornais nas crises do suicídio de Vargas e da posse de Juscelino. Repus em meus arquivos as manchetes e editoriais de alguns deles. Como amuletos contra a tentação do vilipêndio.

Não obstante, também à imprensa fica a população obrigada pelo serviço prestado. O Brasil não será o mesmo. A sensibilidade da opinião pública sofreu, mas educou-se. A administração dos negócios de Estado dará um salto de qualidade. O mesmo se espera venha a ocorrer com os políticos, os jornalistas e, em particular, com o clube de que sou sócio amador, o clube dos colunistas públicos.

Wanderley Guilherme dos Santos é membro da Academia Brasileira de Ciências