Título: Corte de despesas vai dominar debate no futuro governo
Autor: Safatle, Cláudia
Fonte: Valor Econômico, 02/10/2006, Política, p. A7

Lula, cercado pelos jornalistas: economia estável ainda vai se deparar com obstáculos que impedem o país de voar mais alto Esta será a primeira vez, nos últimos 30 anos, que o governo que assume dia 1º de janeiro de 2007, encontrará a economia em estado de plena normalidade. A inflação deve encerrar o ano na casa dos 3,4%, conforme previsão do Banco Central, ou menor ainda segundo as expectativas de mercado; o superávit em transações correntes - que expressam a solidez das contas externas - acumula um saldo de US$ 8,255 bilhões até agosto e é projetado em US$ 11,9 bilhões para o ano; e as taxas de juros básicas, embora ainda elevadas para padrões internacionais, é a menor da história recente, 14,25% nominais ao ano. O governo produz superávits primários consecutivos desde 1998 e cumpre com folga metas mais ousadas - 4,25% do PIB - desde 2003. Ainda assim, por causa da taxa de juros que incide sobre o endividamento público, o setor público carrega um déficit nominal de 3,54% do PIB, ou mais de R$ 70 bilhões em doze meses.

Tudo parece pronto para dar impulso ao crescimento econômico que há doze anos sequer atinge uma taxa média de 3% ao ano, num período em que o mundo cresce à taxas bem mais exuberantes e os países emergentes como China, Índia e Rússia, disparam à frente. Curar a anemia da economia brasileira, contraída à partir da crise da dívida externa em 1982, é o maior desafio do próximo governo. O presidente que assumir em janeiro ainda vai se deparar, apesar dos bons fundamentos macroeconômicos, com uma sequência de obstáculos que impedem o país de alçar vôos mais altos.

"Nós, agora, vamos testar o quanto o Brasil pode crescer em um ambiente de normalidade econômica", indicou o diretor do Banco Central, Afonso Bevilaqua, ao, na semana passada, ao divulgar o relatório trimestral de inflação, que trouxe uma revisão da expectativa de crescimento do PIB para este ano dos esperados 4% para 3,5% - percentual ainda ambicioso diante dos dados já ocorridos.

Ou seja, as anomalias inflacionária e de balanço de pagamentos, que resultaram em hiperinflação e crises cambiais nos últimos anos, estão removidas e os juros seguirão em queda. O que falta, então, para o país poder crescer 5%, 6% ou 7% ao ano?

Os diagnósticos de economistas das mais diversas tendências políticas apontam para uma causa comum fundamental: os desequilíbrios fiscais, que vem sendo cobertos por uma carga de impostos sufocante, que cresce ininterrupta-mente desde meados dos anos 90 e consome quase 40% do Produto Interno Bruto (PIB) para financiar os gastos crescentes do Estado.

O escape do endividamento público esgotou-se e hoje, simultaneamente aos gastos crescentes, o governo busca reduzir o tamanho da dívida líquida do setor público frente ao PIB, dos cerca de 50% para a casa dos 40% em cinco anos, como garantia de solvência da dívida. É útil assinalar que, mesmo com os superávits primários dos últimos anos, a dívida bruta como proporção do PIB está na casa dos 74%.

No ambiente dos economistas, sejam eles mais simpáticos ao PT ou mais ligados ao PSDB e PFL, já se formou a consciência de que é preciso colocar freios nas despesas em 2007 e aliviar os investimentos do peso da carga tributária. E mais, será necessário iniciar um processo de redução do gasto público determinado em lei, confirmou o ministro da Fazenda, Guido Mantega, falando pelo governo Lula e neste, por uma ala conhecida atualmente como neo-desenvolvimentista, que ganhou espaço no governo com a saída de Antonio Palocci. Estes se distinguem da visão mais liberal, abraçada com alguma parcimônia por Palocci, por não pretenderem abrir mais a economia, reduzindo as tarifas de importação mesmo que de forma unilateral; por serem avessos à privatização; e por atribuírem ao Estado responsabilidades que os liberais ou monetárias transfeririam sem reservas para o setor privado, preservando nas mãos do governo o poder de regulação e fiscalização, entre várias outras diferenças

Os economistas oficiais que lidam com as contas públicas já preparam medidas para garantir o superávit primário de 4,25% do PIB em 2007 e nos próximos cinco anos. Colocam essa questão como urgente para conter a deterioração das expectativas dos agentes privados quanto à capacidade do governo de sustentar a política fiscal por mais um bom tempo.

O consenso de que é preciso cortar gastos, porém, ainda não chegou nas áreas políticas das agremiações partidárias e mesmo dentro do governo Lula, hoje, há resistências fortes a continuar no caminho das reformas. Sobretudo, quando a discussão se desloca para a Previdência Social. Nenhum candidato à Presidência se posicionou claramente nessa questão - a previdência carrega um déficit de mais de R$ 40 bilhões por ano - temendo o impacto eleitoral de uma opção por mexer mais uma vez na vida dos que vão se aposentar.

Embora seja uma decisão inspirada na mera conta aritmética -- não há dinheiro suficiente para prosseguir atendendo às demandas da sociedade, se esta não está disposta a contribuir com mais tributos- a equação política para o novo governo administrar a tesoura nos gastos correntes (que incluem dos programas sociais às despesas de custeio da máquina pública) não é simples. Trata-se de definir quem vai perder benefícios e isso demandará uma composição de forças políticas que nenhum dos candidatos dispõe hoje.

A escolha que se coloca ao próximo presidente, portanto, parece singela: ousar nas mudanças estruturais para desobstruir os caminhos do crescimento econômico; ou prosseguir em mais do mesmo e colher os frutos minguados da baixa atividade econômica. Ousar significaria investir em mais reformas constitucionais (da previdência e do mercado de trabalho, por exemplo) ; e infra-constitucionais mas igualmente delicadas, como a legislação ambiental que permite competências concorrentes e sobrepostas do Ministério Público, do Ibama e do Tribunal de Contas da União (TCU), retardando projetos e obras necessários ao desenvolvimento, como disse Mantega em entrevista recente ao Valor.

A busca do déficit nominal zero - ou seja, encerrar com o processo de endividamento do setor público - consta dos programas de governo. Foi adotada pelo candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, e faz parte das idéias dos ministros da economia do governo Lula, não como uma meta a ser adotada em lei, mas como objetivo a ser perseguido nos próximos quatro anos. E isso se mostra factível no momento em que não há mais justificativas para o Banco Central operar com juros reais básicos tão elevados como vem sendo feito há anos.

No front externo, o país passou por uma virada espetacular à partir da adoção do regime de taxa de câmbio flutuante, em 1999, e acumula robusto superávit em transações corrente do balanço de pagamentos. Esta é uma área que também deverá sofrer mudanças nos próximos anos, pois uma economia carente de investimentos não pode nem deve se dar ao luxo de remeter permanentemente recursos para o exterior. As projeções do Banco Central para 2007 indicam que o superávit de mais de US$ 11 bilhões deste ano deverá cair para algo próximo a US$ 2,5 bilhões no próximo exercício e, nos anos futuros, as contas correntes deverão alternar pequenos superávits com pequenos déficits, financiáveis pela captação de recursos no exterior. Essa será uma terceira fase da recente história das contas externas do país, que saiu de déficits pesados apurados durante o período do câmbio administrado, para superávits importantes nos últimos anos.

Quanto mais rápida for essa transformação, melhor para a formação da taxa de câmbio e mais compatível com a quadra de uma economia estabilizada. Despesas até há pouco tempo irrelevantes tenderão a assumir importância no balanço de pagamentos, como os é o caso dos investimentos diretos de brasileiros no exterior, que retratam o processo de internacionalização das empresas brasileiras.

A diminuição do saldo em conta corrente deverá ser provocada pela redução do saldo comercial, decorrente de um menor crescimento das exportações e de maior volume de importações; e as contas financeira e de capital também sofrerão mudanças importantes como resultado da forte redução de endividamento externo.