Título: Disputa morna na periferia mantém preferência por Lula
Autor: Nassif, Maria Inês
Fonte: Valor Econômico, 02/10/2006, Política, p. A21

Nem parece eleição na favela de Nhocuné, na Zona Leste da capital paulista. Com o rigor na fiscalização do trabalho de boca-de-urna, as cédulas dos candidatos chegam às ruas do bairro pobre da capital quase que do nada, pelas mãos de ninguém. Propaganda dos tucanos Geraldo Alckmin e José Serra entopem as ruas estreitas já sujas, mas viram confete nas mãos das crianças: com um saco, elas recolhem os papéis e depois os devolvem, aos montes, nas cabeças dos passantes. No bar, os jovens, já de manhã e apesar da lei seca, tomam cerveja. Na entrada do beco, um homem faz trouxinhas de maconha. Está em casa.

Dentro do beco, Delma Domingues de Carvalho, 40 anos, 8 filhos, eleitora do PT - afinal, o preço do saco de arroz, de R$ 10 na era pré-Lula, caiu 50% -, conta com um sorriso triste a história do filho que se envolveu com aqueles de fora. Alex foi pela primeira vez para a Febem com 9 anos; teve outra internação aos 11 e a última aos 16. Depois dos 18, oito meses no presídio. Delma acompanhou o filho na Febem; não foi visitá-lo no presídio. "A gente tem que dar uma prensa", fala para Sônia Pereira da Silva, aidética, que descobriu a doença há quatro anos porque o marido ficou doente antes. Ainda assim, teve mais dois filhos. Cria mais a neta, de uma filha de 21 que está na cadeia. "Adolescente, não trabalhava, ficava sonhando com roupa nova de shopping e roubou uma." Era para ficar presa um ano, está há mais. "Não tenho como ir no fórum. Cuido dela, ou das crianças".

Nem Sônia, nem Delma recebem Bolsa Família. Não sabem dizer por que - apenas que a burocracia encaminhou alguma coisa errada. Sônia não recebe benefício do INSS por ser aidética. A médica do posto diz que ela tem apenas uma doença; precisaria de ter três. As duas estão desempregadas. Vivem do programa social de Vasco Pires de Freitas, o seu Vasco da favela, 73 anos, espírita e petista, que há 32 anos desvia da família parte de seus rendimentos para ajudar os pobres da comunidade. As duas votam no PT. "Sei que os alimentos ficaram mais baratos", diz Sônia. A aidética diz que a fé a mantém viva. Delma afirma que, para ela, são os poemas. Ela não estudou mais de dois anos, mas desabafa poemas, quase que sem erros, em cadernos universitários espirais. Fez um para Alex, que chama "Desajustado". "Apronta, escapa/ Faz a vida certa, faz a vida errada/ Traz no corpo cicatrizes de seus vários deslizes (...) Aos 17, na Febem, a partir dos 18... / Responder? Só a ele convém".

Dulcinéia Freitas Machado, que vende cachorro-quente para disfarçar o desemprego, cuida de porção de filhos. A filha Lélia, 19 anos, tem uma criança de 2, outro chegando e o marido na cadeia. A vida é dura e Dulcinéia nem vontade de votar tem.

Vida na favela é quase sempre de mulher cheia de filho e sem marido. Maria Arruda é exceção, em parte. Tem onze filhos, mas tem marido - Nelson Gonçalo da Silva, que se apresenta como sambista e pedreiro. Maria diz que vota em Alckmin. Depois fica com pena do seu Vasco, diz que vai pensar.

Descendo a favela, entre o pessoal do conjunto da Cohab de Itaquera é mais fácil encontrar eleitores de Alckmin. Mas nem tanto. Norma Prates diz que votou nos tucanos para presidente e para o governo. E confessa que anulou os votos para deputados federal e estadual. "Todo mundo diz que o Alckmin é sem-graça, é picolé de chuchu, mas a política não tem graça mesmo". Francisco Elmas também fechou com os tucanos, acha que conseguiu um bom candidato para federal, mas deixou em branco o estadual. Adailton Salvalagio, de 25 anos, protestou com o voto: ex-eleitor do PT, votou P-SOL, de alto a baixo. Mas Jaime Braga, ex-metalúrgico, não abandonou o sonho: cravou Lula de novo. "Com toda essa bagunça, ainda é um dos melhores".

O fiscal do PT Marcílio Vieira Lima, também morador da Cohab, olha o desânimo da eleição. No bairro, mesmo com um eleitorado ainda dos tempos do malufismo, Lula é forte. Mas a eleição está sem-graça. Quando entrou no PT, logo no início do partido, a militância contava. Depois foi acabando. É de lá um dos três únicos núcleos de base que sobraram da origem do PT. Hoje é a máquina que conta. Lima diz que ele, e outros militantes, estão esperando acabar a eleição. Depois, vão acertar contas com os "companheiros" que fizeram bobagem. "Tem muita gente brava".