Título: Sistema financeiro começa a se recuperar da crise na Argentina
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 02/10/2006, Finanças, p. C4

Na segunda-feira, 25 de setembro, passados mais de quatro anos da pior crise econômica que a Argentina já viveu, Eduardo Assef, 39 anos, dono de uma loja franqueada da rede de lavanderias Lave-Rap, demonstrava todo seu rancor contra os bancos do país. Ao ser solicitado pelo Valor a falar de sua experiência com instituições financeiras, ele nem espera a primeira pergunta, e levanta a voz: "Bancos? Aqui você tem um inimigo público número 1 dos bancos". E completa: "Fui cliente de bancos por 12 anos, perdi todo meu dinheiro e agora estou desbancarizado, não quero mais saber de bancos", afirma o microempresário que paga seus funcionários e fornecedores e gerencia todo o caixa de sua empresa em dinheiro vivo.

O "corralito" - diminutivo da palavra curral em espanhol, significa o mesmo que em português, cercado de gado - foi decretado em 1º de dezembro de 2001 e significou o congelamento das contas bancárias por 90 dias. Na primeira etapa, os saques ficaram limitados a 250 pesos por semana, depois subiram para 300. Em uma segunda etapa, alguns meses depois, o governo determinou o pagamento dos créditos dos correntistas junto aos bancos com bônus do Tesouro, de longo prazo - o chamado "corralão".

Foi a última tentativa do governo argentino para deter a fuga de dinheiro dos bancos, resultado da deterioração da economia do país. Junto com o congelamento das contas veio a moratória da dívida externa e a maxidesvalorização do peso. Até então, o peso estava atrelado ao dólar por lei, na relação de um para um, e era permitido inclusive manter contas bancárias em dólar.

A medida gerou violentos protestos e resultou na renúncia do então presidente Fernando de La Rúa, em 21 de dezembro de 2001. O "corralito" terminou oficialmente em 2 de dezembro de 2002, no governo Eduardo Duhalde, e a Argentina só saiu da moratória no final de 2003, já no governo Nestor Kirchner, quando renegociou sua dívida externa de mais de US$ 90 bilhões, com desconto de 75%.

A reação do microempresário Eduardo Assef dava a impressão de que nada tinha mudado desde que, no início de 2002, o bombeiro Marcelo Wakstein vestiu um calção de banho e, com a mulher e dois filhos, todos com trajes de férias, armaram quatro cadeiras de praia em frente à agência do HSBC, onde ele tinha conta. "Já que o banco confiscou meu dinheiro e me impediu de viajar, decidi passar o verão aqui mesmo", explicou Wakstein, segurando um cartaz que dizia: "Este banco ficou com o futuro dos meus filhos". A cena, relatada entre muitas outras produzidas pelo "corralito", no livro "Argentinos - Mitos, Manias e Milongas", das jornalistas brasileiras Marcia Carmo e Monica Yanakiew, era como uma caricatura da insatisfação da população com os bancos.

Mas muita coisa mudou no sistema bancário do país. Hoje o crédito bancário é um dos setores que mais cresce na Argentina, que tem visto o Produto Interno Bruto (PIB) avançar de 8% a 9% ao ano desde 2003. Segundo um recente relatório da agência Standard & Poor´s (S&P), passados 18 meses da conclusão da reestruturação da dívida externa, o portfólio de empréstimos privados no país cresceu 60,5% até julho, atingindo US$ 67,5 bilhões. Só no primeiro semestre, o crédito cresceu 39,6% comparado com o mesmo período de 2005, sendo que até dezembro o avanço no ano foi de 36,2% comparado a 2004. O contexto macroeconômico de crescimento persistente melhorou a qualidade da carteira, com os empréstimos não pagos caindo de 5,2% em dezembro para 4,5%.

Ainda assim, o volume de crédito em relação ao PIB é de apenas 10,6%, pouco se comparado aos 69% do Chile e aos 32% do Brasil. Mas, em 2002, a participação dos empréstimos na economia argentina baixou a 6% do PIB. Hoje o crédito ao consumidor, que no Brasil representa 8% do PIB e no Chile 23%, na Argentina não passa de 4% do PIB.

O setor encolheu quase 20% desde o início da crise. De 113 instituições bancárias e não bancárias, privadas, públicas, nacionais e estrangeiras, existentes no ano 2000, restavam 91 em dezembro de 2004, último dado disponível no Instituto de Estatísticas e Sensos (Indec, na sigla em espanhol, o IBGE argentino). A maior queda, quase 36%, foi do número de bancos estrangeiros, que baixou de 39 para 25. O faturamento do setor caiu 25% antes da correção monetária. Em 2005 e 2006, o quadro permaneceu estável, segundo a Associação de Bancos da Argentina (ABA), uma das quatro entidades banqueiras do país.

Porém, este encolhimento não pode ser explicado só pela crise. "Na década de 90, o sistema financeiro argentino refletiu as tendências mundiais de fortes economias de escala e concentração das instituições financeiras como resultado da globalização", explica Mario Vicens, presidente da ABA, entidade que reúne 37 instituições nacionais e estrangeiras, que representam 25% dos ativos do sistema e cerca de 37% dos empréstimos.

De fato, os dados do Indec mostram que em dez anos, de 1993 a 2003, o sistema financeiro do país sofreu um brutal encolhimento. O número de instituições financeiras diminuiu 37,5% e mais de 300 empresas desapareceram. A maior redução nesse período foi de bancos e empresas não bancárias dedicadas à intermediação monetária e financeira, que diminuíram de 206 para 96 (uma queda de 53,4%). O número de bancos privados nacionais, que em 2003 era 31, caiu pela metade do que eram em 1993.

"Efetivamente, a crise golpeou muito mais forte o setor bancário que outros setores", afirma Vicens, lembrando que o "corralito", uma espécie de confisco como o que os brasileiros enfrentaram no governo Collor em 1992, foi interpretada pelos depositantes como uma mudança das regras do jogo imposta pelos bancos, gerando uma situação de conflito. "Na verdade os bancos não eram os responsáveis. Eles foram convocados a pagar uma dívida que era do setor público", defende o presidente da ABA.

A partir de 2003, o país começou a retomar a atividade, voltou a crescer, houve uma reposição salarial que estimulou o consumo. "O sistema financeiro acompanhou esse processo, ampliando as linhas de crédito pessoal, o cartão de crédito e o financiamento hipotecário. O público começou a voltar para os bancos", relata gerente geral do Banco do Brasil em Buenos Aires, Alexandre Cardoso.

As empresas ficaram com extrema liquidez, com muito dinheiro entesourado em cofres ou em depósitos à vista. "Em 2004, isso aqui parecia a Suíça, as taxas interbancárias chegaram a 1,8% ao ano a curtíssimo prazo, já que havia muita oferta de dinheiro e quase nenhum tomador", lembra Cardoso.

Mas a crise não gerou só perdedores. A desvalorização do peso beneficiou, e muito, os exportadores, principalmente os ligados ao agronegócio. Aos poucos, as empresas que continuavam com capacidade de tomar empréstimos voltaram ao mercado, tomando recursos no interbancário para financiar suas operações, pagando pouco mais de 4% a 5% ao ano, entre o final de 2004 e início de 2005. O cenário foi melhorando com a alta dos preços das commodities agrícolas no mercado internacional. Hoje o custo do crédito é bem maior, de 14% a 15%, graças a ações do Banco Central para enxugar a liquidez.

Embora menor, o sistema bancário argentino opera hoje em bases mais saudáveis, depois de reduzir de 41,6% para 25,6% sua exposição ao setor público nos últimos 18 meses, e de receber mais de US$ 3,7 bilhões em reforço de capital, segundo a S&P. Os lucros acumulados no período chegam a US$ 4,25 bilhões, equivalentes a um retorno de 1,2% sobre os ativos.

O desafio agora é reconquistar a confiança do público para trazer de volta os depósitos, especialmente os de médio e longo prazo. Para Rodolfo A. Corvi, diretor geral executivo do Banco Itaú Buen Ayre, a subsidiária do Itaú na Argentina, a senha é crédito. "O público começou a voltar para os bancos pelo lado dos empréstimos, não pelos depósitos. Como o consumo cresceu muito, começou a haver uma demanda importante por empréstimos. E quando você é cliente de um banco e recebe um empréstimo, por outro lado você também deposita", diz Corvi.