Título: Após 'ducha fria' americana, EUA e Brasil discutirão Doha
Autor: Moreira, Assis
Fonte: Valor Econômico, 15/01/2007, Brasil, p. A4

Negociadores do Brasil e dos Estados Unidos voltam a se reunir esta semana em Washington, para tentar "aproximar posições" sobre cortes de tarifas e subsídios para superar o impasse da Rodada Doha na Organização Mundial do Comércio (OMC). Esta nova tentativa entre a maior potência comercial do mundo e o líder do principal grupo de países em desenvolvimento na rodada - o G-20 - ocorre no rastro de uma ducha fria deixada pela representante comercial americana Susan Schwab na sexta-feira passada, em Genebra.

Embora tenha recebido orientação da Casa Branca para "fazer algo" para evitar o fiasco total da rodada, Schwab passou três horas reunida com o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, mas não colocou cartas na mesa e afastou especulações sobre um iminente avanço nas negociações. "Estamos perto de um 'breakthrough'? Não, temos um longo caminho para isso", afirmou. "Estamos fazendo progressos? Sem duvida". Após essa decepcionante visita, com os EUA sempre dando sinais contraditórios, cresce o sentimento de que a rodada é "refém" dos americanos.

O comissário de Comércio da UE, Peter Mandelson, que chegou a falar de "esperança nova" e da possibilidade de fechar a Rodada Doha ainda em 2007, deveria telefonar para o ministro brasileiro Celso Amorim no fim de semana para discutir novas articulações. Para o Brasil, a chave do jogo está com EUA e UE. Os europeus resistem a aprofundar a redução de tarifas agrícolas, e os americanos não querem elevar os cortes nos subsídios a seus agricultores.

Washington quer, na verdade, um pacote completo, misturando as várias pontas das áreas agrícola, industrial e de serviços. Boa parte dos países, incluindo o Brasil, considera que o desbloqueio na agricultura é que abrirá caminho para concessões nas outras frentes da negociação.

A delegação brasileira que vai a Washington será chefiada pelo novo subsecretário de assuntos econômicos e tecnológicos do Itamaraty, ministro Roberto Azevedo. Depois, ele irá a Nova Deli discutir com a Índia, que resiste a amplos cortes agrícolas e industriais.

Negociadores tem advertido que existe uma "curta janela de oportunidade" até abril para se chegar a um acordo retomar Doha. Caso isso não aconteça, pode-se esperar algo próximo do que ocorreu em 1991 na negociação para liberalizar o comércio mundial conhecida como Rodada Uruguai.

Esta só foi desbloqueada com um gesto impulsivo de Arthur Dunkel, o diretor-geral do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), que antecedeu a OMC. Exasperado com o persistente impasse entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, Dunkel, um ex-diplomata suíço, ignorou os diplomatas, quebrou o protocolo e esboçou o texto de um acordo por sua própria conta, para maior abertura industrial, agrícola, de serviços e respeito de patentes. O documento foi atacado por todos os lados, mas acabou levando ao acordo em 1994, deixando um gosto amargo para países como o Brasil.

Antes de assumir a direção da OMC, Lamy visitou Dunkel e foi aconselhado a ser prudente no uso dessa "opção nuclear". Afinal, uma recusa de sua proposta de acordo minará sua credibilidade junto aos países. Mas é difícil crer que o diretor da OMC, experimentado negociador internacional, fique de braços cruzados diante de um naufrágio total da negociação. Se, como ultimo recurso, colocar seu esboço de acordo na mesa, Lamy forçaria Estados Unidos, União Européia, Brasil, Índia, Japão, Austrália e outros países-chaves na negociação a aceitar ou rejeitar o acordo inteiro.

Pelo momento, negociadores preferem crer em entendimento. Dizem que a situação melhorou ligeiramente desde julho, embora as demandas recíprocas continuem exageradas. Ninguém quer pagar o preço cobrado pelo outro. Além disso, a situação política nos dois elefantes do comércio global é sensível. Nos EUA, o presidente George W. Bush perdeu a maioria nas duas casas do Congresso para os democratas. Na França, com peso na política comercial européia, a eleição presidencial será em maio, reduzindo o espaço para barganhas.

Certos negociadores acham que um acordo depende "só de alguns bilhões" de dólares de cortes nos subsídios. Mas esse sentimento pode ser entendido através do discurso de despedida do holandês Carlo Trojan, após seis anos como embaixador da UE na OMC. Trojan conta que, quando chegou na OMC, ficou surpreso com a repetição dos mesmos argumentos dos outros embaixadores, "quase como um gravador quebrado". Ele diz que os negociadores pareciam ter um "problema de audição" coletivo. Mas logo descobriu que, com a repetição de um argumento, eles começam a acreditar neles próprios. "Em visita a meu psicólogo, descobri que também começava a acreditar no meu próprio argumento", afirmou.

O sistema internacional de comércio passará por fortes turbulências se o impasse na Rodada Doha não for quebrado até o fim de março. A negociação foi iniciada em novembro de 2001, suspensa em julho do ano passado e, sem entendimento, pode ser empurrada para 2009. Mas aí será outra rodada, com outra agenda, incluindo vínculo entre comércio e regras trabalhistas e ambientais.