Título: O bizarro socialismo de Hugo Chávez
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 15/01/2007, Internacional, p. A10

Exatamente à uma hora da tarde do último sábado, o presidente Hugo Rafael Chávez Frias olhou seu relógio. Estava atrasado para um almoço com o presidente da República Islâmica do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que chegara às 9 da manhã a Caracas e já se encontrava no Palácio Miraflores à espera de seu anfitrião.

Chávez ocupava a tribuna da Assembléia Nacional desde as onze para apresentar o relato sobre os feitos de seu governo e a leitura estava apenas pela metade, interrompida por improvisos com mais de dez referências a Simón Bolívar e outros próceres da história venezuelana, sem omitir recordações de seus encontros com Fidel Castro, Daniel Ortega (Nicarágua), Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e pelo menos uma óbvia citação de Lênin ("imperialismo é a fase superior do capitalismo") e de Mao Tse Tung ("Estados Unidos são um tigre de papel"). Atrás dele, na mesa diretora dos trabalhos, três mulheres sorriam, eram as presidentes da Assembléia, do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Eleitoral.

O plenário lotado aplaudia cada frase de efeito. Toda a Câmara (a Venezuela não tem Senado) está integrada por deputados da coalizão que apóia o governo, pois a oposição cometeu o segundo maior dos seus grandes erros ao negar-se a apresentar candidatos às eleições legislativas - o primeiro, irreparável, foi apoiar o fiasco da tentativa de golpe militar em 2002. O refrão final do discurso - "Pátria, socialismo ou morte!" - só seria pronunciado às 14h55.

Quem esperava uma explicação sobre o caminho da Venezuela para o socialismo, anunciado da mesma tribuna em outro discurso de três horas, na quinta-feira, ficou frustrado. Chávez disse apenas que sabe para onde está conduzindo seu barco e que tem controle seguro do timão. Repetiu que sua revolução - "socialismo do século 21", "Estado comunal", "revolução bolivariana", são muitas as adjetivações - "é pacífica, mas não desarmada". Um processo que, segundo ele, vai se estender, no mínimo, até 2021, pois será candidato novamente em 2013. "Tive 3,5 milhões de votos (56%) em 1998, 7,3 milhões (63,1%) em 2006. Terei 10 milhões em 2013, e vou chegar aos 70%", disse Chávez, ainda na primeira meia hora de seu discurso.

Para isso vai necessitar uma reforma da constituição que, como acontecia nos Estados Unidos até a morte de Franklin Delano Roosevelt em 1945, permita sucessivas reeleições em regime presidencialista. "É uma contradição a constituição dizer no seu artigo principal que todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido, e, mais adiante, impedir que o povo decida se o presidente deve continuar pelo tempo que o povo concordar", afirmou o vice-presidente Jorge Rodríguez, que, pelas regras da democracia venezuelana, não é eleito, mas nomeado pelo presidente. Aos 53 anos, Chávez aparenta bom preparo físico e boa saúde para encarar um futuro de sucessivas eleições e plebiscitos.

A reforma da constituição ele mesmo fará, pois já pediu ao Congresso poderes para legislar durante um ano (a atual constituição, com a figura da chamada Ley Habilitante, permite essa transferência de poderes), período que aproveitará para encaminhar todas as outras propostas de reforma do Estado que vem anunciando sem antecipar detalhes. Uma comissão de trinta partidários de Chávez prepara desde o ano passado as reformas a serem, depois de homologadas pelo presidente e tornadas lei, submetidas a referendo popular. Consultas plebiscitárias cada vez mais freqüentes são, aliás, das poucas certezas sobre como será a democracia venezuelana daqui para a frente.

A ausência de detalhes deixa a nação em suspense: nada de concreto se sabe sobre como se comportará o governo em relação à propriedade privada, por exemplo. Até aqui, confirma-se que serão estatizadas todas as empresas de energia elétrica, entre elas a Elecar, distribuidora da região de Caracas, pertencente à americana AES. A Cantv, da espanhola Telefónica, a primeira no ranking de telecomunicações e líder absoluta no fornecimento de serviços de internet, está também na relação das empresas que, por estratégicas, voltarão ao controle do Estado. "Vamos nacionalizar a Cantv, mas não todo o setor de telecomunicações", disse Jesse Chacón, novo ministro de Telecomunicações.

O diretor do do Banco Central, Alcides Díaz, por sua vez, desmentiu que exista intenção de estatizar bancos. "Enquanto estiverem funcionando como até agora, isso não acontecerá", disse. E o ministro das Finanças, Rodrigo Cabezas, procurou tranqüilizar pequenas e grandes empresas: "Ninguém pensa em desapropriar a Coca-Cola, a General Motors, ou o médio e pequeno comércio".

A reação dos empresários às ameaças veladas e também abertas à propriedade privada tem sido discreta, se não inexistente. As empresas diretamente atingidas não se manifestam e, conformadas, esperam que se cumpra o prometido pelo governo de que não haverá confisco e que a desapropriação será indenizada, como manda a lei. A própria reação da bolsa de valores, ao derrubar as ações da empresas listadas para o "corredor da morte", não parece interessar aos atingidos, pois depreciarão também o valor de mercado dessas ações no momento em forem discutir a indenização.

"Ninguém quer se manifestar com medo de atrair a atenção do governo para sua própria empresa ou seu setor", disse ao Valor um empresário do setor de construção, na mesa do restaurante La Castañuela, no bairro de Mercedes, enquanto acompanhava pelo telão, sábado à noite, uma empolgante partida de beisebol. No mesmo dia, no "El Nacional", jornal de aberta oposição, um colunista reclamava dos empresários venezuelanos que, aproveitando o verão, deixaram o país e foram distrair-se em Roma a jogar moedas nas águas da Fontana di Trevi.

-------------------------------------------------------------------------------- Ministro das Finanças, Rodrigo Cabezas diz que ninguém pensa em desapropriar a Coca-Cola ou General Motors --------------------------------------------------------------------------------

Absolutamente certa, por enquanto, é a sorte da RCTV, emissora de televisão de maior audiência de Caracas, que terá seu sinal "devolvido ao Estado". A concessão para funcionamento da emissora, com 53 anos de existência, expira em maio próximo e o próprio presidente anunciou sábado que não haverá prorrogação.

Oficialmente, o governo alega razões administrativas e poderes legais para não renovar a concessão, mas Chávez, no mesmo discurso, chamou de fascistas e oligarcas os proprietários da emissora, numa comprovação das razões políticas que determinam sua decisão. Chávez não cedeu sequer à tentação de antecipar temas de novelas a serem apresentadas pela estação pública que substituirá a RCTV - uma delas, claro, sobre a vida de Simón Bolívar, e outra, mais amena, sobre um conto que leu em que um camponês chamava o médico para atender seu filho e dizia: "Se meu filho morrer, teremos aqui dois mortos".

A RCTV assume a postura oposicionista e, no uso de seu direito de livre manifestação, começa a campanha já às 6 horas da manhã (os venezuelanos dormem e acordam cedo) com um programa de entrevistas em que o entrevistador discursa mais do que o entrevistado e em que o entrevistado é sempre da oposição. A emissora estatal abandona, por sua vez, a "linha cultural" de que se vangloria nos intervalos dos seus programas e responde aos ataques da RCTV no mesmo tom e falta de isenção jornalística. "Ditador", diz-se no Canal 3, referindo-se a Chávez. "Golpistas", retruca o canal 8.

Trinta partidários do presidente fazem parte de uma comissão que, desde o ano passado, estuda as reformas. Não se conhece o conteúdo da maior parte delas, mas já se percebe que serão profundas. Até aqui o governo tem desmentido que elas, por meio de fusões, vão acabar com estados e prefeituras governados pela oposição - o candidato derrotado na eleição de dezembro de 2006, Manuel Rosales, governa o estado de Maracaibo; Leopoldo López, prefeito do município de Chacao, uma região administrativa de Caracas, é um dos líderes da oposição nacional.

Mas o governo não diz o que significa a "nova geometria do poder", anunciada pelo próprio Chávez, nem o que representam os conselhos comunais, destinados a ter cada vez maior influência na gestão pública, assumindo poderes que pertencem a vereadores, prefeitos, governadores e legisladores em todas as instâncias. Desconhece-se também o modelo a ser seguido pelo socialismo de Chávez, embora já exista a certeza de que não será o da social-democracia da Europa, considerada "muito branda" por uma corrente de Chávez e "revisionista" pela ala mais radical.

Um dos políticos próximos a Chávez, William Izarra, ex-vice-chanceler, diz que o socialismo do século 21 pregado pelo presidente "não é o comunismo, mas um conceito inédito e próprio das raízes venezuelanas, que busca a emancipação do povo, numa situação em que este está unido às forças armadas". Solicitado a ser mais explícito, faz um discurso igualmente vago e conclui por condenar corridas de cavalo, beisebol profissional e programas de prêmios na televisão, contrários "à cultura necessária para a criação de um novo ser".

"Da Europa, a inspiração vem da Comuna de Paris", diz, por sua vez, Rodríguez Araque, embaixador da Venezuela em Cuba e fundador do Movimento Para Todos, um dos partidos que integram a base parlamentar de apoio a Chávez. O embaixador se refere à primeira experiência de ditadura do proletariado na Paris de 1871, repleta de idealismo, sacrifício e ingenuidade e que sobreviveu apenas três meses, de fevereiro a maio.

Chávez recomendou a leitura de Karl Marx ao arcebispo Roberto Luckert, do estado de Coro, que o criticara pela intenção de "recuperar" a RCTV. Um dos clássicos de Marx, "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", analisa exatamente a Comuna de Paris e, nele, deixou registradas as frases pelas quais é mais conhecido e respeitado ainda hoje: "a história só se repete como farsa" e "os homens fazem sua própria História, mas não a fazem como querem".

Enquanto sua equipe prepara o arcabouço legal da "revolução cultural" que Chávez promete para os próximos 14 anos, o presidente estará hoje em Quito para a posse do presidente eleito Rafael Correa e, no dia 18, estará no Rio, para a reunião de cúpula do Mercosul. Antes disso, dedicou seu fim de semana a conversas com o presidente do Irã.

Chávez e Mahmoud Ahmadinejad, aliados na defesa da redução das cotas de produção do petróleo no interior da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), assinaram onze acordos de interesse recíproco, entre eles a criação de um fundo de US$ 2 bilhões, destinado a financiar investimentos produtivos em seus países e "em outros países da América Latina que o necessitarem" e anunciaram para maio próximo a entrada em produção de uma montadora de automóveis de Irã e Venezuela no estado de Maracai. Os carros Centauro custarão 23 milhões de bolívares (US$ 10,7 mil, ao câmbio oficial de 2,15), inferior ao preço de seus concorrentes na categoria popular que, segundo Chávez, custam entre 30 milhões e 33 milhões de bolívares.

Na hora dos discursos, o radical Ahmadinejad referiu-se a Deus e fez um discurso de paz e condenação à sociedade de consumo que até o Papa Bento XVI aprovaria. Chávez atacou o imperialismo. E pediu a seu interlocutor que desse, em seu nome, um abraço no aiatolá Ali Khamenei, supremo líder religioso xiita do Irã, com quem, disse Chávez, teve oportunidade de trocar idéias pessoalmente em sua visita a Teerã no ano passado.