Título: Câmbio e desenvolvimento
Autor: Lemos, Maurício
Fonte: Valor Econômico, 15/01/2007, Opinião, p. A12

Qual é o efeito de uma desvalorização cambial sobre a balança comercial, o nível de atividade, a inflação e o crescimento de determinada economia?

O mainstream, a autodenominada corrente principal do pensamento econômico, centra possível resposta nas condições Marshall-Lerner que procuram determinar o efeito sobre a balança comercial de uma desvalorização cambial em uma economia que tenha um produto de exportação e um produto de importação. A conclusão é que a balança responderá positivamente quando as ofertas e demandas (exportações e importações) forem elásticas, dependendo o resultado final de dois fatores: 1) o virtual aumento da demanda internacional, tendo em vista a redução de preço do produto nacional; 2) a eventual redução da demanda nacional pelo produto importado, devido ao aumento do preço.

Na medida que as exportações e importações se diversificam, as condições de Marshall-Lerner perdem poder analítico. Cabe explicar aquilo que as condições supõem como dado pela hipótese da existência de um produto de exportação e outro de importação. Requer explicação saber o que ocorre, em face de uma desvalorização, em termos de adição de novos produtos de exportação e da substituição de importações.

Para responder, deve-se retroagir a David Ricardo e ao conceito das vantagens comparativas, oriundas das diferenças relativas de produtividade entre regiões. Estas diferenças poderiam ser explicadas em razão de vantagens: 1) dos recursos naturais; 2) das economias externas; 3) da capacidade empresarial (inovação e diferenciação de produtos) e as economias de escala interna; 4) pela combinação das anteriores. Os três últimos itens não foram explicitados por Ricardo, mas encaixam-se no esquema das vantagens comparativas. Como resultado, ter-se-ia uma hierarquia de produtos ordenados por diferenças de produtividade, expressas em termos de taxa de câmbio real.

A figura ilustra um país hipotético, com níveis diferenciados e hierarquizados de produtividade dos produtos exportáveis (X1 a X5) e importáveis (M1 a M5). O eixo vertical traduz as diferenças de produtividade, em termos de taxa de câmbio real, que viabilizariam a inserção produtiva dos setores (produtos) X1 a X5, os quais, somados à produção viabilizada, resultariam na oferta de divisas expressa no eixo horizontal. Pelo lado das importações, o eixo vertical mostra as taxas de câmbio real que inviabilizariam a produção nacional e viabilizariam as importações dos setores (produtos) M1 a M5. Quanto maior o nível de câmbio, mais setores são incluídos no esforço exportador, aumentando a oferta de divisas no lado real da economia. Pela vertente das importações, quanto maior o nível de câmbio, menor o número de setores (produtos) e, portanto, menor o valor da demanda de importação. Em uma decisão de política econômica, fixado um nível de câmbio Re, ter-se-ia um valor exportado de Xe, importado de Me, um saldo comercial de (Xe-Me), a inclusão no comércio internacional dos setores X1, X2 e X3, e a preservação, em relação à concorrência internacional (não exclusão interna) dos setores M3, M4 e M5.

Esta estrutura ricardiana é compatível com Marshall-Lerner, que pode complementá-la. Uma vez considerada correta, o alcance da análise pode balizar várias questões da política econômica.

-------------------------------------------------------------------------------- Dependendo da estrutura econômica e do nível inicial do câmbio, o trade off entre desvalorização e inflação pode ser falso --------------------------------------------------------------------------------

Um exemplo refere-se ao trade off entre desvalorização e inflação. Uma desvalorização, ao incluir setores menos competitivos no processo produtivo, reduz a produtividade média e marginal, gerando conflito distributivo, consubstanciado, em um primeiro momento, em inflação. Contudo, uma desvalorização que permitisse a inserção dos setores X4 e M4 geraria ganho de renda real e produção suficiente para mitigar e diluir totalmente o custo inflacionário.

Ao reverso, se o potencial de incorporar setores à economia for menor, a desvalorização pode ser insuficiente para inserir setores relevantes, não sendo recomendável pelo custo inflacionário. Em resumo, dependendo da estrutura da economia e do nível inicial do câmbio, o trade off entre inflação e desvalorização/crescimento pode ser falso, quando se tem como referência um horizonte de tempo suficiente para que os efeitos da incorporação produtiva mitiguem o impacto inflacionário inicial.

Outro exemplo refere-se a um virtual trade off entre política industrial horizontal, isto é, voltada a todos os setores de forma indistinta e a política industrial vertical, ou seja, aquela que prioriza setores. Em geral, partidários da adoção exclusiva das políticas horizontais (mainstream) alegam que o poder público gera ineficiência ao escolher vencedores, ao invés de esperar a solução de mercado.

A estrutura mostrada pela figura sugere outra realidade, na qual os setores são desiguais, com particularidades distintas. Portanto, para funcionar, ao lado de adequadas políticas horizontais, deve haver discricionariedade, exatamente com os setores situados na zona cinzenta da competitividade internacional, definida pela política cambial. Na figura, a zona cinzenta inclui X3, X4, M2 e M3. São estes setores, com risco, que procuram o Estado, que deve orientar sua ação com uma política industrial focada e consistente.

Em resumo, há forte relação entre câmbio e desenvolvimento. Adotar uma regra cambial clara, que evite volatilidade e avance no nível de desvalorização, sem descuidar do seu custo vis-à-vis sua mitigação, pode ser base para a política industrial que, aliada a uma política de infra-estrutura física e social, levará ao desenvolvimento. Neste caso, a política monetária, base para uma política cambial adequada, constitui ponto de partida fundamental.

No jargão futebolístico, pode-se afirmar que a função do goleiro é proteger o gol, e não fazer o gol. Mas no futebol moderno, a reposição da bola é fundamental: pode-se repô-la, por pretensa prudência, apenas para os zagueiros, com o risco de passá-la para o adversário. De outra forma, pode-se repô-la, com criatividade, para o meio de campo e para o ataque, criando oportunidades de gol.

Maurício Lemos é economista, professor titular do Cedeplar-UFMG e Diretor do BNDES.