Título: Governo está à deriva na economia, diz Leme
Autor: Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 15/01/2007, Especial, p. A14

Aumentar o salário mínimo não resolve, porque não vai melhorar a distribuição de renda "

Acho que nem o presidente tem muito claro qual é a política econômica dele para o segundo mandato "

O governo Lula, neste início de segundo mandato, está à deriva na área econômica. A opinião é do diretor de pesquisa de países emergentes do banco Goldman Sachs, Paulo Leme, que vê, nas ações governamentais, deterioração da política fiscal, abandono das reformas estruturais e microeconômicas e negligência do diagnóstico feito pelo próprio governo no primeiro mandato.

Leme não acredita que as mudanças ocorridas na política econômica provoquem uma crise de confiança nos mercados porque, segundo ele, o ambiente externo ainda é muito favorável e deverá continuar assim ao longo deste e do próximo ano. Além disso, o "arcabouço" conquistado nos últimos anos - inflação baixa, contas externas sólidas e superávit primário - ainda está de pé.

"Em matéria econômica, o governo está um pouco à deriva, optando por decisões fáceis, que não têm impacto sustentável em termos de crescimento", adverte Paulo Leme, de Nova York, nesta entrevista ao Valor.

O economista acredita que as medidas já conhecidas do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) vão na direção contrária da elevação do crescimento da economia e também da distribuição de renda. Para atingir esses objetivos, recomenda Leme, o governo deveria aprofundar o ajuste fiscal e retomar a agenda de reformas que adotou no primeiro mandato.

Valor: Diante das recentes decisões do governo Lula, já dá para dizer que a política econômica sofreu mudanças?

Paulo Leme: Em linhas gerais, o arcabouço não mudou. A política econômica continua alicerçada em inflação baixa, balanço de pagamentos sólido, meta de superávit primário. Qualitativamente, houve ligeira deterioração, notável a partir da saída, em março de 2006, do ministro Antonio Palocci e do secretário Joaquim Levy.

Valor: O que mudou?

Leme: Mudou a convicção da necessidade de manter superávits primários maiores, de conter o crescimento do gasto corrente e de continuar implementando reformas estruturais. Um aspecto muito importante e sólido, especialmente, foi elaborado pelo Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica), eram as reformas no âmbito infra-constitucional, fundamentais para aumentar a produtividade do país.

Valor: Que reformas?

Leme: As microeconômicas, a reforma do sistema financeiro, a Lei de Falências. Lisboa deixou um trabalho bastante abrangente e de boa qualidade que não teve continuidade.

Valor: Há dúvidas, entre os analistas estrangeiros, quanto ao cumprimento da meta de superávit primário em 2007?

Leme: Não. A dúvida e a preocupação são com a alta probabilidade de o governo desperdiçar uma grande oportunidade de o país crescer mais.

Valor: Por quê?

Leme: O presidente foi reeleito há mais de dois meses. Depois do Carnaval, já terão passado quase quatro meses e não se vê a formulação de nenhuma política macroeconômica que possa dar seguimento às grandes conquistas que o Brasil teve até agora.

Valor: Que conquistas?

Leme: A estabilidade de preços, o superávit no balanço de pagamentos, a redução da dívida externa, a melhora no gerenciamento da dívida pública interna. Há uma paralisia no processo de implementação de políticas macroeconômicas, um afrouxamento e uma deterioração da qualidade da política fiscal. Está cada vez mais claro que aumentar o crescimento é uma possibilidade que não será alcançada no segundo mandato do presidente Lula.

Valor: Há preocupação quanto ao desempenho no curto prazo?

Leme: Para aqueles que acompanham o país de perto, sim. Há preocupação com a qualidade da política fiscal devido à dificuldade crescente de manter a meta de superávit primário, dado o comprometimento da despesa. Além do aumento do salário mínimo acima do que defendia a própria equipe econômica, está ocorrendo o crescimento do déficit da Previdência, o que já requer uma atuação muito mais incisiva, que o presidente Lula rejeita.

Valor: O sr. acha que o governo está trocando crescimento por distribuição de renda?

Leme: Não diria que o objetivo é tanto melhorar a distribuição de renda porque as medidas que têm sido tomadas, como o aumento do salário mínimo, são extremamente ineficazes para melhorar a distribuição de renda.

Valor: Aumentar o mínimo não ajuda a distribuir mais?

Leme: Segundo estudos do próprio governo, do Ipea, especialmente do economista Ricardo Paes de Barros, o dispêndio de R$ 1 bilhão é muito mais eficaz em programas direcionados de combate à pobreza ou de investimento em educação do que aumentar o salário mínimo. Fazer o que está sendo feito é contraproducente, porque não vai melhorar a distribuição. Além do mais, vai inibir o aumento do crescimento e do emprego.

Valor: Ao justificar a decisão do mínimo, o presidente alegou que, em dois períodos de forte crescimento (anos JK e milagre econômico), o salário mínimo perdeu valor. Isso não deixa clara a sua opção?

Leme: Acho que nem o presidente tem muito claro qual é a política econômica dele para o segundo mandato. Não sei, portanto, se é correto resumir o posicionamento do governo como uma política de redistribuição de renda. Se o objetivo fosse esse e reduzir a desigualdade, que são dois conceitos diferentes, certamente a política econômica a ser implementada não seria esta do salário mínimo e a de escolher, de maneira seletiva, setores que serão privilegiados com isenções tributárias. O aumento do mínimo além da produtividade tem de ser repassado como custo e preço para a sociedade. Vai terminar em maior inflação, um imposto regressivo que termina deteriorando a distribuição de renda. O que o país precisa fazer, para resolver os problemas de distribuição e desigualdade, são reformas estruturais profundas, que partem principalmente da área fiscal.

Valor: Quais seriam elas?

Leme: As mais importantes são a redução do déficit da Previdência, o aumento da DRU (Desvinculação das Receitas da União) de 20% para 35% por dez anos e um esforço efetivo de redução dos gastos correntes. Ter abandonado o redutor de 0,1% do PIB dos gastos correntes, que já era algo irrisório, foi muito negativo. A despesa primária (sem contar os juros da dívida) subiu 12 pontos percentuais nos últimos 12 anos, o que é brutal. O país já não agüenta mais a carga tributária e seus efeitos nocivos no crescimento e no emprego.

Valor: Que vantagens teriam as medidas que o sr. sugere?

Leme: A economia de despesa gerada por essas três medidas seria investida na redução da carga tributária, numa reforma que simplificasse o atual regime de impostos. Essa seria a verdadeira política de melhora da distribuição de renda, da redução da desigualdade, da geração de emprego e de melhora da mobilidade social.

Valor: O governo não estaria diante de uma "escolha de Sofia": aprofundar o ajuste fiscal e gerar crescimento a longo prazo ou partir para uma política distributivista no curto prazo?

Leme: Talvez não haja uma escolha. O que me deixa perplexo é que o caminho que o país tem de seguir é tão claro e não é simplesmente o do ajuste fiscal. O ajuste é um componente de um programa muito mais abrangente e complexo para a retomada do crescimento sustentável. O que me parece é que faltam lucidez, convencimento e orientação naquilo que é necessário ser feito em matéria de reformas estruturais, ajuste fiscal, abertura da economia, reformas microeconômicas e do mercado trabalhista.

Valor: O diagnóstico do governo não é diferente do seu?

Leme: O surpreendente é que esse diagnóstico mais abrangente e essas propostas mais concretas de medidas macroeconômicas não são novidade, inclusive, foram preparadas dentro da equipe econômica do governo e no próprio Ipea. Um estudo do Ipea, lançado no fim do ano e preparado pela equipe dos economistas Paulo Levy, Fábio Giambiagi e Ricardo Paes de Barros, entre outros, tem um diagnóstico claríssimo. O governo tem, portanto os estudos, o diagnóstico e as medidas que precisa adotar. Em matéria econômica, o governo está um pouco à deriva, optando por decisões fáceis, que não têm impacto sustentável em termos de crescimento.

Valor: O governo pretende adotar regra de correção do salário mínimo que, segundo os técnicos, dará previsibilidade aos gastos da Previdência. Além disso, deve criar uma regra de correção dos salários do funcionalismo. Essas medidas não são suficientes para conter a evolução dos gastos?

Leme: Não. Esse enfoque não é correto. É só olhar a história econômica recente do Brasil para constatar que falar de regra, e muito menos de regra permanente, não quer dizer absolutamente nada. A regra é aquilo que foi feito para ser descumprido seis meses depois. O salário mínimo tem de ser determinado ao sabor das regras de mercado e vinculado à produtividade do trabalho, do contrário vai gerar inflação e não vai melhorar a distribuição de renda. Se você aumentar o mínimo além da produtividade da economia e acima da inflação, tem de, no mínimo, desvincular os benefícios da Previdência.

Valor: Por quê?

Leme: Os três fatores que estão levando a um crescimento explosivo do déficit da Previdência são a vinculação do mínimo com os benefícios, e o governo quase que dobrou em dólares o salário mínimo em quatro anos; a pirâmide etária do Brasil; e a idade mínima de aposentadoria, que é relativamente baixa, se comparada à de outros países. Se esses problemas não forem atacados, o déficit da Previdência continuará crescendo, sendo que já é insustentável, dado que a carga tributária asfixia completamente o consumo e o investimento privados, o que é incompatível com o crescimento e a geração de empregos.

Valor: Aumentar o consumo, via salário mínimo, não ajuda a economia?

Leme: O debate está desvirtuado. A pergunta é a seguinte: o que o país quer fazer? Quer crescer 5%, ter melhor distribuição de renda? Bem, então, o que tem de ser feito não é o que o governo está fazendo. O correto seria ter um conjunto de medidas para aumentar o superávit primário para 5,25% do PIB, por meio da redução da despesa corrente e de uma reforma que reduza a carga tributária, de uma abertura comercial que pode até ser mesmo unilateral, de uma reforma trabalhista e de uma série de medidas para aumentar a produtividade total dos fatores, algo fundamental para elevar a taxa de crescimento.

Valor: Aumentar o superávit primário não afetaria programas sociais, como o Bolsa Família?

Leme: É possível aumentar o superávit e cortar despesa corrente, protegendo os programas sociais. Em linhas gerais, o Bolsa Família é muito mais eficaz, em termos de melhorar a distribuição de renda e aliviar a pobreza, do que o salário mínimo e poderia até ser ampliado.

Valor: Especialistas alegam que os gastos previdenciários, desde a Constituição de 88, funcionam, na prática, como uma rede de proteção social, na medida em que muitos de seus beneficiários nunca contribuíram para o sistema. Reformar a Previdência seria limitar o alcance do maior programa social do país. O sr. concorda?

Leme: Não. Acho que isso é altamente demagógico e mal informado. Eticamente, é louvável a preocupação de ter programas de amparo social, por exemplo, através do Loas, da assistência ao trabalhador rural, mas a sociedade tem de se perguntar o custo-benefício de algumas decisões. O que é claro é que o crescimento da despesa pública, especialmente dos benefícios da Previdência, passou a ser insustentável. O Brasil tem programas de assistência social iguais ou maiores que os de países industrializados da OCDE e do G-10, que elevam os gastos do governo a um nível só comparável aos da Itália e da França - 41% do PIB. Isso exige uma carga tributária, hoje de 38% do PIB, maior que a dos Estados Unidos. O Brasil gasta mal e a conseqüência disso é que a "bondade" com grupos direcionados pune a sociedade como um todo. Na tentativa de proteger alguns grupos, o governo acaba desprotegendo a maior parte da população, porque tira recursos do setor privado, que vão deixar de ser consumidos e investidos. Isso leva a várias distorções.

Valor: Quais?

Leme: Leva a um grau de informalidade muito alto, reduz a produtividade total dos fatores, que hoje no Brasil é muito baixa. Diminui a capacidade do país de crescer mais rápido, sem inflação, quando comparado a seus concorrentes na Ásia e mesmo na América Latina.

Valor: O sr. disse que o governo gasta mal. Tem um exemplo?

Leme: O gasto em educação é fundamental para aumentar a produtividade do trabalho. Se alguma coisa salta à vista no Brasil em relação aos outros países do Brics - China, Índia e Rússia - é que a qualidade do ensino brasileiro, medida pelo ensino secundário, é muito inferior à de seus concorrentes. O Brasil gasta o dobro da China em educação - 4,1% versus 2% do PIB. No entanto, os índices que medem a qualidade do ensino chinês são muito superiores, então, a produtividade do trabalho lá é muito superior à do Brasil.

Valor: Crescendo menos, o Brasil corre o risco de ser expulso dos Brics?

Leme: Não. O Brasil tem pré-condições de crescer muito mais, de voltar à sua taxa de crescimento histórica, de 5% ao ano, e conquistou, com todo o direito, a possibilidade de ser mais ambicioso.

Valor: Por quê?

Leme: Porque estabilizou as contas externas, reduziu a dívida externa, derrubou a inflação, conquistou credibilidade na área monetária e no próprio Tesouro Nacional. Num mundo cujas perspectivas são ainda muito favoráveis, o Brasil vai continuar numa faixa de crescimento médio de 3% a 4% ao ano. No estudo original dos Brics, tudo o que o país precisava fazer era crescer próximo a 3,5% para ficar entre as dez maiores economias nos próximos 50 anos. A referência importante são os Brics.

Valor: Qual é?

Leme: É que o Brasil tem condições, em termos de dotação de recursos naturais, de treinamento e formação gerencial, de sofisticação empresarial e do mercado financeiro, de vantagens comparativas e complementaridades importantes na parte de matérias-primas, de ser muito mais ambicioso. Esta é a batalha para a qual o Brasil não está se posicionando. Não é questão de ser ou não Brics. Isso não é o problema. A tendência secular do país é outra. O Brasil perdeu seu rumo nos anos 80, com desaceleração do crescimento. Mas, hoje, o país fez um esforço profundo, que já dura oito anos ou até mais se considerarmos a estabilização do Plano Real. A minha preocupação é mais sobre o desperdício de uma oportunidade e menos se o país vai cumprir a meta fiscal ou não, se vai ter um salário mínimo "x" ou "y". O debate está muito pequeno, míope.