Título: Em crise, italianos buscam saída no jogo
Autor: Scherer , Steve
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2012, Internacional, p. A11

Mesmo em um período de profunda crise econômica, a promessa de um "bilhete premiado" espreita em cada esquina italiana. A Itália é, hoje, o maior mercado europeu de apostas e um dos maiores do mundo, comprometendo os gastos dos consumidores na terceira maior economia da zona do euro num momento de severa recessão e empurrando um número crescente de viciados em jogos de azar para as ruas.

"Na atual algo desesperada Itália, as pessoas apostam esperando um milagre", disse Andrea Riccardi, ministro italiano de Cooperação Internacional e Integração, à Reuters. Riccardi é um dos fundadores da Santo Egídio, uma instituição de caridade cristã em Roma cada vez mais inundada de problemas dos viciados em jogo desde que a Itália começou a relaxar a regulamentação para o setor, duas décadas atrás.

Inicialmente, o novo setor gerou bem-vindas receitas para o Estado e minou o mercado de jogo ilegal dominado pelo crime organizado, o mais destrutivo problema econômico e social na Itália.

Mas as receitas aumentaram apenas marginalmente, ao passo que o volume de apostas mais que quadruplicou desde 2001, para € 80 bilhões no ano passado, e a máfia simplesmente migrou suas atividades para o jogo legal. Ministros do governo, como Riccardi, e alguns parlamentares argumentam que a desregulamentação foi longe demais e querem mais regras, mas ninguém está propondo uma reversão dramática.

Para o primeiro-ministro Mario Monti, que chegou ao poder em novembro prometendo reformar a moribunda economia italiana por meio de desregulamentação, a história da liberalização da jogatina é uma espécie de fábula com moral admonitória.

A desregulamentação do jogo começou em 1992, quando a Itália tinha extrema necessidade de novas receitas fiscais durante uma crise econômica muito semelhante àquela em que se encontra hoje. A crise acelerou sob o antecessor de Monti, Silvio Berlusconi, quando este assumiu o poder em 2001.

Mas a arrecadação não está aumentando na mesma proporção que o volume das apostas. A receita tributária foi superior € a 8,5 bilhões no ano passado, mas cresceu menos de € 3 bilhões entre 2001 e 2011, ao passo que os gastos totais dos consumidores com o jogo tiveram um crescimento de € 60 bilhões, segundo dados da agência estatal de supervisão do setor.

Os italianos pagam um imposto de 21% na aquisição da maioria dos bens de consumo não alimentícios, mas as empresas no setor de jogos de azar pagam baixos impostos para criar incentivos ao setor. O imposto médio sobre as receitas do jogo foi inferior a 11% em 2011.

Embora muitos economistas estimem que a economia italiana contrairá cerca de 2% neste ano, acredita-se que a receita do jogo crescerá mais de 12%, para mais de € 90 bilhões, ou 5% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

Estimativas divulgadas pelo setor de jogos de azar italiano indicam que o país gerou cerca de um quarto da receita de jogos em todo o mundo em 2010 - a qual atingiu um total de US$ 368 bilhões.

Mais pessoas estão jogando hoje do que em qualquer momento passado, 700 mil italianos são viciados em jogo e os 400 mil caça-níqueis eletrônicos arrecadam mais de metade de todas as apostas, segundo o Eurispes, um instituto romano de pesquisas que estuda questões políticas, econômicas e sociais.

Durante os primeiros três meses do ano, com a queda nos gastos do consumidor e o aprofundamento da recessão, a Lottomatica, única empresa de capital aberto detentora de uma concessão para explorar o jogo no país, registrou um trimestre recorde, tendo as apostas nas máquinas italianas crescido mais de 35%, para € 3,2 bilhões, disse seu presidente-executivo, Marco Sala.

A duas maiores casas de apostas na Europa, Paddy Power e William Hill, abriram cassinos on-line na Itália, no ano passado.

Mas os maiores vencedores são os clãs mafiosos, segundo o relatório de uma comissão parlamentar antimáfia publicado há um ano. O crime organizado é um problema patológico e aparentemente insolúvel que vem pesando na economia real italiana há mais de 150 anos.

A máfia demonstrou mais uma vez sua capacidade de resistência ao reagir ao desafio da liberalização do jogo. Quando as máquinas caça-níqueis foram legalizadas, a máfia simplesmente passou a investir em empresas legais de jogos.

A Máfia siciliana, a "Ndrangheta calabresa e a Camorra, perto de Nápoles, criaram empresas de jogo legítimos em toda a Itália com a ajuda de "laranjas" sem antecedentes criminais, disse a comissão.

"O jogo legal, em virtude dos níveis elevados e seguros de renda, e em vista do risco judicial relativamente baixo, tornou-se, agora, a nova fronteira para o crime organizado", disse Gianfranco Donadio, um magistrado do gabinete nacional da promotoria antimáfia, à comissão.

Donadio disse que os mafiosos estão usando o setor de jogos de azar para lavar bilhões de euros obtidos ilegalmente com o tráfico de drogas, contrabando de armas, prostituição, agiotagem e extorsão.

Autoridades italianas abriram dezenas de processos envolvendo investimentos do crime organizado em empresas de jogos legais, nos últimos anos, mas empresas controladas por mafiosos são muitas vezes difíceis de identificar e novas firmas são criadas todo dia.

Fluxos ilegais de dinheiro são facilmente disfarçados em meio a receitas em numerário, e a lavagem de dinheiro é de difícil comprovação, porque as notas precisariam ser rastreadas de sua origem criminosa até sua utilização na economia real.

Riccardi, o ministro da Cooperação, diz que quer aprovar novas regras para regulamentar a publicidade e alertar sobre os riscos, divulgando claramente a probabilidade de ganhar em cada tipo de jogo. "Todo mundo deve poder viver e gastar seu dinheiro como desejar, mas não será nosso dever tornar as pessoas conscientes do risco que estão assumindo?"