Título: Falta planejamento para a entrada de herdeiras na gestão
Autor: Campos, Stela
Fonte: Valor Econômico, 15/01/2007, Eu & Investimentos, p. D6

Na terceira geração da família fundadora da Editora Record existem cinco mulheres. Roberta Machado, 30 anos, é uma das três filhas do atual presidente, Sérgio. Há um ano e meio, ela trabalha com o pai no gerenciamento de projetos da companhia. Antes, passou cinco anos na Shell sem saber se um dia ingressaria no negócio familiar. Acabou decidindo entrar por conta própria. "Não houve um planejamento", reclama. Hoje, é uma das sucessoras potenciais ao comando da empresa ao lado das irmãs e primas.

Desconfiada que essa falta de planos para a sucessão feminina não era um problema exclusivo de sua família, Roberta decidiu investigar outras histórias para sua tese de mestrado no Instituto Coppead. A pesquisa realizada com sete herdeiras, com idades entre 28 e 33 anos, de empresas de médio e pequeno porte, mostrou que ela estava certa. Na maioria das companhias não existia um planejamento sobre a preparação das sucessoras como costuma ocorrer com os herdeiros. "Isso acontece mesmo quando todos os descendentes são mulheres", diz.

Uma das consequências dessa entrada sem planejamento no negócio da família, segundo o estudo, é que as herdeiras demoram mais para se sentirem engajadas na empresa, ter auto-confiança e a encontrarem seu espaço. "A angústia na entrada é grande", diz Roberta.

Para a professora de relações de trabalho do Instituto Coppead, Ursula Wetzel, uma explicação para essa falta de planejamento é que os pais, principalmente os mais velhos, ainda não se acostumaram com a idéia de que as mulheres não querem ficar em casa. "É um problema de geração", diz. Por isso, elas acabam não sendo preparadas para assumir o negócio no futuro. "Os pais se acham eternos e pensam que nada pode acontecer com eles", diz Roberta.

Na pesquisa conduzida por Roberta, as herdeiras contam sobre a dificuldade dos pais em delegar responsabilidades, especialmente se a companhia ainda está na primeira geração. Outros estudos mostram que 75% das empresas familiares no mundo estão sob comando da primeira geração, 20% nas mãos dos filhos dos fundadores e apenas 5% são dirigidas pelas gerações seguintes. As estatísticas também apontam que apenas 30% das empresas familiares sobrevivem à primeira geração.

Leo Pinheiro/Valor Patrícia Mannarino, 29 anos, disputará o comando da distribuidora Só Peixe Em relação às mulheres, uma pesquisa da Arthur Andersen, de 2002, diz que do total das herdeiras que chegam ao comando, nos Estados Unidos, 8,3% conseguiram porque os filhos homens eram muito jovens para assumir o cargo; 23,36% porque existiam mais filhas mulheres e 12,10% devido a inexistência de filhos homens. No Brasil, não existem dados específicos sobre o número de mulheres no comando das empresas familiares, que representam quase 90% das companhias privadas no país e 50% das 200 maiores relacionadas na revista "Valor Grandes Grupos".

Roberta acredita que no seu caso específico houve até um pouco mais de planejamento na sua preparação, comparando sua história com a de outras herdeiras. "Quando fui para a Shell houve uma conversa sobre a importância de eu ter uma experiência fora", conta. "Mas minha entrada ficava sempre no ar". Ela conta que decidiu entrar na editora porque decepcionou-se com o primeiro emprego. "Lá não via a possibilidade de participar de decisões estratégicas", diz. Em uma empresa menor como a Record, -com 200 funcionários e um faturamento médio de R$ 5 milhões ao mês-, fazendo parte do clã, ficava mais fácil chegar perto do poder.

Ter uma filha como braço direito pode ser bastante confortável para o pai. "No geral, as sucessoras têm intenção de dar continuidade à gestão, pois encaram o campo profissional de forma holística, não se desconectam do lado pessoal", diz Ursula Wetzel. "Para o homem, tomar uma decisão que signifique uma cisão familiar parece ser um problema menor".

"Existe uma grande cumplicidade entre eu e meu pai na hora de tomar uma decisão", conta Flávia Borges, 30 anos, candidata à sucessão da empresa Marko Construções, de 130 funcionários, junto com duas irmãs. Ela foi a primeira a entrar na empresa da família há três anos. Atualmente, as três estão trabalhando no negócio. Como tem mais tempo de casa, acabou se tornando o braço direito do pai, o fundador. "Se ele viaja e surge um problema, não tenho medo de ligar para ele, outros gestores talvez não tivessem essa liberdade", conta.

Flávia almoça com o pai todos os dias e o assunto é sempre trabalho. De manhã, pega carona com ele e as irmãs, mas com elas só comenta tópicos relacionados às suas áreas de atuação na companhia. "Não comento coisas estratégicas", explica. Para ela, a idéia de substituir o pai no futuro é desafiadora. "Apesar de pensarmos de forma parecida temos estilos diferentes, ele gosta de arriscar mais", diz. Suprir o lado empreendedor do fundador também será algo difícil, em sua opinião. O principal produto da empresa é uma cobertura de telhados patenteada pelo pai. "As idéias brotam da cabeça dele", diz. "Não consigo fazer o mesmo".

A grande expectativa sobre o desempenho da herdeira no seu ingresso na empresa é uma queixa comum das possíveis sucessoras. "A cobrança do mercado e do próprio pai é muito grande", diz Sandra Bogado, primeira na linha de sucessão da fábrica de vidros para laboratórios Roni Alzi Vidros Científicos, com faturamento anual de R$ 4 milhões e 30 funcionários. Os irmãos seguiram carreiras distintas e ela foi a única a entrar na empresa fundada pelo pai em 1979. Sandra começou a trabalhar quando ainda cursava economia, em 1999. Ela conta que o pai, aos poucos, foi relaxando e confiando em sua gestão. "Há cinco anos, ele tirou cinco dias de férias, no seguinte foram 10 dias e ano passado conseguiu ficar 40 dias fora", conta.

Grávida de sete meses, Sandra não sabe quanto tempo irá ficar longe da empresa. "Meu pai precisa de mim", diz. Ela acha difícil equilibrar vida pessoal e trabalho na empresa da família. "A responsabilidade pesa", diz. O estudo de Roberta Machado, entretanto, mostra que a maior parte das herdeiras consegue ter um horário mais flexível no negócio da família. "No geral, o estilo de vida delas é mais confortável", diz Roberta.

Um problema enfrentado pelas sucessoras no lado pessoal, segundo o estudo, é a falta de uma rede de relacionamentos tanto dentro como fora da empresa. "O círculo de amigos fica restrito", diz Ursula Wetzel, do Instituto Coppead. A questão hierárquica complica a relação com outros funcionários. "Não dá para participar do chopp com o pessoal. Alguns podem confundir as coisas e no dia seguinte fica difícil alguém aceitar uma advertência", diz Sandra Bogado. Por outro lado, como nem todas as herdeiras passaram por outras companhias, o network fora da empresa também é pequeno. "É preciso tomar cuidado com isso", alerta a professora do Coppead.

Apesar de serem testadas em suas ações por pares, fornecedores e pelos próprios familiares, algumas herdeiras, segundo o estudo, recebem a superproteção dos pais pelo simples fato de serem mulheres. Patrícia Mannarino, 29 anos, que disputará o comando da distribuidora de pescados carioca Só Peixe com dois irmãos, admite receber alguns "mimos" do pai. "Eu percebo isso em relação ao horário", conta. A empresa começa a funcionar às 4h30 da manhã. O pai sempre passa a função de abrir a companhia para o irmão, nunca para ela.

Na distribuidora, Patrícia já fez um pouco de tudo. Participou da área de compras, cobrança, recursos humanos e seleção de pessoal. "Atuo tanto na área financeira quanto na administrativa", diz. Dos cem funcionários da empresa, metade são homens. Ela diz que não sofre preconceito pelo fato de ser mulher. "O conhecimento técnico e a capacidade são respeitados", acredita. As decisões ainda são muito centralizadas no pai, apesar dele escutar bastante os filhos, segundo ela. O sucessor do fundador ainda não está definido, mas a herdeira diz que não pensa em fazer carreira em outro lugar.